Atualizada dia 8.5.2020

A ocorrência repassada pela Central de Atendimento da Polícia Civil para a 4º Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher e Vulneráveis levou a agente Maria Bethania Valadão a um velho portão de ferro cruzado, sem tranca, que dá acesso à casa de número 1974, na esquina da Rua Sete com a Avenida Perimetral, no centro de Colinas do Tocantins, em frente à Escola Municipal Odimar Lopes, e a poucos metros do parque agropecuário da cidade, localizada a 270 km da capital, Palmas. 

Era o primeiro encontro com a vítima de usuários de drogas que haviam tentado roubar a casa no dia 26 de março de 2020. Eles invadiram o local e agrediram a moradora, uma idosa. Com 1,60 de altura, esquálida, de cabelos curtos e alvos, de rosto fino marcado por rugas, a vítima parecia recebê-la com desconfiança naquele dia, amparada em uma sombrinha azul, como se bengala fosse.

 

Estava vestida numa calça bege, sapatilhas rasteiras em tom ocre, blusa em tons avermelhados e marrons, com estampa de uma cidade antiga e uma camisa de listas verticais pretas e brancas, aberta na frente. 

Duas mangueiras e uma cajazeira cobrem boa parte do quintal de sombra à frente da casa no espaço entre a construção, o portão e o muro lateral. Da calçada, tomada por uma camada de lodo que cobria inclusive parte do lote, a agente chegou a uma velha construção de duas águas com portas sem fechaduras. 

Dentro da casa, a imundície gerada pelo lixo acumulado assomava-se por todos os cômodos. A cobertura com inúmeras telhas quebradas mostrava que chovia ali dentro. As janelas todas com vidros estilhaçados e sem trancas. O piso acumulava resquícios de lama seca e fétida de água da chuva e terra pela falta de limpeza diária misturada com fezes de animais, como a dezena de gatos que fazia companhia à moradora. 
 
Dezenas de sacolas de supermercado e sacos de lixo amontoados em um canto dividiam espaço com uma velha cadeira de praia, único assento do lugar. Uma velha escrivaninha de madeira, sem gavetas, amparava uma antiga televisão de tubo, eivada de chumbo. Na sala, uma geladeira inutilizada e desnivelada. 

Em um dos quartos, uma velha cama com as lençóis surrados. As poucas roupas se empilhavam no chão e ainda numa cantoneira com um cano perpassado de um canto a outro da parede que servia de cabideiro. No banheiro, no lugar de portas, dois panos presos por cordões no portal, a meia altura, conferiam a privacidade mínima para a moradora solitária.  O mato cobria o quintal e subindo até o muro de lajes de concreto pré-moldadas dando ao lugar um ar de abandono, como a imagem de um cativeiro humano.

A saga para desvendar o mistério da mulher clandestina

De vocação espírita, Maria Bethânia se estarreceu com a imagem da mulher naquela casa. “Quando vi aquela senhora, em completo abandono, eu fiquei chocada. Naquele instante eu falei para mim e para Deus que eu não sossegaria enquanto não desse um final feliz para ela”, relembra Bethânia. 

Nos dias seguintes, tentou mobilizar os órgãos de assistência social para amparar a vítima, mas ouviu que já haviam assistido à senhora, com relatos de problemas de interação com ela. A agente precisou de outras três visitas para conquistar a confiança da vítima e convencê-la de que teria de ser submetida ao exame de corpo de delito. 

A agente também descobriu que a casa era alvo constante de saque e depredação dos usuários de drogas da região. “Os malas roubaram tudo e acredito que ela apanhou naquele dia porque não havia mais nada para ser levado”, conta Bethânia, que conseguiu apoio da corporação para rondas seguidas na quadra, na tentativa de proteger a casa e sua ocupante.

Ainda assim, no dia marcado, a agente precisou passear com a mulher por cerca de 5 horas pela cidade, tempo em que fez a descoberta que mudaria a vida daquela senhorinha.  “Eu perguntava pela família dela e não encontrava respostas. Após rodar até a hora de fazer o exame, ela pediu para me chamar de irmã e me disse: - Vou lhe contar coisas que nunca contei a ninguém. O meu nome verdadeiro não é esse.”

Os documentos da mulher, usados para iniciar a investigação, apontam que ela se chamava Maria Lidia Martino com registro geral 737.493 da Secretaria de Segurança Pública no Tocantins (SSP-TO) feito no dia 22 de junho de 2001. 

A agente mobilizou o também agente policial Luiz Costa Júnior, 45 anos, da 14ª Divisão Especializada de Repressão ao Crime Organizado (Deic) de Colinas. Os dois suspeitavam que os documentos eram verdadeiros, mas os dados, não.  

O cuidado redobrou quando Bethânia ouviu a narrativa de Maria Lidia, com detalhes de que enfrentara a ditadura militar e chegou a ser presa em 1967. Também lhe contou que era uma das fundadoras do Partido Comunista do Brasil e fugira para Goiás em grupo de lutas contra a repressão, após passar por treinamento fora do país, para sobreviver às guerrilhas. Maria Lidia revelava que sua verdadeira identidade tinha ligação com uma família que ainda poderia existir em São Paulo.

Da militância à clandestinidade no sertão

Militantes dos movimentos de resistência das décadas de 60 e 70 não reconhecem Maria Lídia.  E nem  Maria Lídia revela quanto tempo militou contra a ditadura, quem eram seus superiores, ou quais destacamentos ou missões participou.

José Dirceu, líder estudantil  entre 1965 e 1968, e um dos militantes que viveram clandestinamente durante a ditadura a partir de 1975, não a reconheceu e frisou que as células dos militantes eram autônomas e não era incomum militantes serem desconhecidos entre si. As fotos enviadas pela reportagem continham imagens de Maria Lidia na juventude, sua documentação do Tocantins e imagens atuais, com a mediação do ex-deputado federal e ex-deputado estadual, Paulo Mourão (PT). 

Maria Lídia sustenta ser uma das fundadoras do Partido Comunista no Brasil, e lembra também do "racha" na militância que desaguou na dissidência de 1967, ano em que afirma ter sido presa. Narra militância na Aliança Nacional Libertadora (ALN), grupo armado fundado por Carlos Marighella, naquele ano, a quem afirma ter conhecido ainda em São Paulo.

Em outro momento, ela também diz ter atuado na parceria da ALN com o MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro). Não detalha o que fez nesses grupos, que passaram à história por fatos como o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em 1969, para ser negociado pela libertação de 15 guerrilheiros presos pela ditadura.

Maria Lidia também não quis revelar se usou um outro nome para ingressar no partido. É uma pergunta que não gosta que lhe seja feita. "Não me pergunte. A gente se identificava pelo número. O meu era o 40, o meu número na fundação do partido." 

A reportagem tentou conferir o registro junto ao PcdoB, mas o centro de documentação do partido se encontrava fechado, em razão da pandemia e o responsável, apesar da insistência da reportagem, não pode confirmar a procedência da informação. Mas é pelo número de registro que ela relembra a militância. O PCB disse à reportagem que "muito provavelmente", Maria Lidia "foi militante do PCdoB, e não do PCB, pois em 1962 um grupo foi expulso do PCB, esse  foi organizar um novo partido usando a sigla PCdoB  e o nome antigo do PCB - Partido Comunista do Brasil, e o mesmo teve a linha politica de luta armada inspirada nos pensamentos do Mao Tse Tung".

Maria Lidia também não quis responder sobre quem eram os seus chefes dentro do movimento que ela participava, a quem ela se reportava, com quem ela participava de missões. Estava na guerrilha, mas não gostava da guerrilha. "Eu não concordava com armas. Nunca peguei em uma arma. Era da inteligência".

Após a intensa repressão que ela disse ter se abatido sobre seu grupo ainda em São Paulo, iniciou a caminhada rumo à clandestinidade antes do final dos anos 1960. "Eu fugi. Eu fugi para o litoral. Haviam arranjado para nós fugirmos para a Argentina. Do porto de São Sebastião até Paraty (RJ), ali era um litoral riquíssimo em peixe, principalmente a sardinha. Ali reuniam milhares de sardinheiros. E o sardinheiro não usa motor, usa a vela, por causa do barulho, para não fazer barulho. Um sardinheiro amigo nosso iria nos levar até o Paraná e de lá iríamos atravessar para a Argentina", lembra. 

"Mas o sardinheiro estava com medo. E ficamos quatro dias esperando. E eu falei, ah, eu vou sair daqui, tá ficando perigoso. Então procurei uma pessoa e perguntei... e eu fiquei na Associação São Sebastião está Vivo, na praia, em São Paulo, aguardando pra ver."

Em suas memórias, o local havia sido fundado por quatro mulheres. Advogadas, professoras e donas de casa de meia idade, para tirar jovens da prostituição. "Depois aquilo foi muito combatido, imagina, quatro mulheres, naquele tempo... eu hoje sou curiosa para saber se ainda existe."

De São Paulo, migrou para Goiás, onde teve amparo para colaborar com a guerrilha a seu modo. Conta que uma família tradicional de políticos goianos lhe ajudou a chegar até o Pará. Naquele estado, membros do partido conseguiram uma nova certidão de nascimento.

O documento é um registro de nascimento expedido dia 29 de julho de 1971, em Castanhal (PA). Conforme a certidão, de nº 19.718, com assento no Livro A-28 e folhas 49 Verso, seu codinome de clandestinidade, Maria Lidia Martino, nascera no dia 5 de dezembro de 1932, em São Paulo (SP), filha de José Martino e Maria do Carmo Martino.  Uma certidão original, mas com dados falsos, como suspeitariam 49 anos depois, os policiais civis de Colinas do Tocantins.

Registros de militantes da antiga ALN no Tocantins 

No final do mesmo ano em que Maria Lídia formalizava sua vida clandestina com outra identidade a partir de Castanhal, no Pará, haveria uma sucessão de quedas de militantes da ALN em São Paulo.  A opressão alcançou o que ficou conhecido pelo grupo dos 28, como relembra o poeta Pedro Tierra, nome adotado durante a militância contra a ditadura, pelo portuense Hamilton Pereira. “Foi uma catástrofe, uma morte atrás da outra.”

Hamilton Pereira também militou na ALN nessa época. Assim como Dirceu, não se recorda de Maria Lidia, nem outro nome associado às fotografias contidas nos arquivos remetidos pela reportagem. Por telefone, lembra que a repressão chegou aos dissidentes políticos do Molipo (Movimento de Libertação Popular) que foram abatidos no Tocantins no ano seguinte, em 1972.

O Molipo era uma dissidência da ALN com alguns membros enviados a Cuba para treinamento. Com a repressão violenta no país, a orientação do comando era que não voltassem para o Brasil, sob o argumento de que o momento era defensivo. “Todos estávamos acossados, soldados por todo lado, e não havia condição de receber ninguém, ia ser uma catarse se viessem. Mas eles tinham outra visão e tomaram a decisão de vir, com organização interna e comando próprio”, lembra Hamilton Pereira.

O temor se concretizou.  “Em Guaraí, no dia 9 de janeiro de 1972 foi morto um dos companheiros, Jeová Assis Gomes. Ele teve o corpo assistido pelo bispo Dom Jaime Collins, de Miracema. E dez dias antes, havia sido preso em Natividade um outro companheiro do mesmo agrupamento, o Ruy Carlos Vieira Berbert. Ruy apareceu enforcado na cadeia. Eu acompanhei a história do Ruy e há dúvidas da morte, que morreu antes que a repressão chegasse de Brasília e São Paulo”, conta Pereira.

Após sair da prisão em que esteve encarcerado por cinco anos - entre 1972, quando foi preso em Anápolis, e 1977-, Hamilton Pereira resgatou a documentação da morte de Ruy.  “Dez anos depois, quando saí da prisão, fui atrás de buscar uma explicação e conseguimos o atestado de óbito com a juíza de Natividade. E provamos que o prisioneiro que havia aparecido morto enforcado na cadeia de Natividade, no dia 2 de janeiro, de nome João Silvino Lopes, na verdade se chamava Ruy.”

Vinte anos depois, ele voltaria a Natividade com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, por ser membro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Fomos buscar mais informações e chegamos na pessoa do coveiro que enterrou Ruy, mas não encontramos vestígios do corpo, no cemitério, provavelmente uma violação de túmulo, o mais provável.” 

Ainda em 1972, houve prisões de dissidentes em Pindorama e Ponte Alta do Norte (hoje do Tocantins) e a repressão causaria mais uma morte em Paraíso.  “No Carnaval de 1972, o Arno Preiss foi cercado e morto lá em Paraíso. Essa é uma sequência de mortes dos militantes do Molipo”, relembra Hamilton Pereira .

Sobre a Guerrilha do Araguaia, Hamilton Pereira relembra que José Genoíno caiu no dia 12 de abril de 1972. A prisão do guerrilheiro ocorreu dois meses antes de Hamilton, no dia 10 de junho. Tempo, espaço e ações próximos, mas não articuladas ou interligadas, na visão do poeta.  “As pessoas em geral buscam um vínculo entre esses grupos, as guerrilhas urbanas, e o que ocorreu em Xambioá, mas a Guerrilha do Araguaia não mantinha contato com o Molipo”, completa. 

Como viveu e quem é a clandestina Maria Lídia

E como Maria Lidia se movimentava na região? Ela participou mesmo da Guerrilha do Araguaia? Permaneceu em algum destacamento ou teve relações com os movimentos camponeses do Bico do Papagaio ou outra cidade do Tocantins, e, mais ainda, como escapou com vida da guerrilha? São perguntas que Maria Lidia ainda não respondeu.

O movimento guerrilheiro na região do Araguaia, conforme narra o jornalista Leonêncio Nossa, no livro "Mata!", teve a história de campo fulminada com a morte de 98 guerrilheiros, 41 deles fuzilados e outros 18 mortos em combates com o Exército Brasileiro.

Em pelo menos três momentos, homens das Forças Armadas e das polícias Militar, Civil, Rodoviária e Federal mobilizaram contingente de mais de 3 mil homens na região entre Xambioá (TO), à época Goiás, e Marabá (PA) entre 1972 a 1974, segundo o livro.

Maria Lídia não aparece nessa obra, uma das mais recentes atualizações sobre o movimento, após a abertura dos arquivos de Sebastião Curió, o militar responsável por dizimar a guerrilha do Araguaia. 

Ela também não aparece nos relatórios da Comissão da Verdade, reveladores dos mortos e desaparecidos do Araguaia, consultados pelo professor Romualdo Pessoa Campos Filho, da Universidade Federal de Goiás, após contato da reportagem. Membro da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), o autor de "Araguaia - depois da guerrilha, outra guerra" e de "Guerrilha do Araguaia – A Esquerda em Armas" não encontrou nenhuma ressonância da personagem em suas pesquisas.  "Há nessa história, relatos de guerrilheiros tidos como mortos, mas que podem ter escapado, para viver outra vida sob outra identidade", pondera.

Maria Lídia conta muito pouco do que fez após tirar a certidão de nascimento paraense e o que fez para sobreviver. Um dos ofícios era ser mascate. "Eu entrava em São Luis dos Montes Belos, São Miguel, Dueré, Cristalândia, mas sempre sem entrar na BR".  Percorria a região por cidades às margens do Rio Araguaia vendendo roupas. "Um advogado recebia dinheiro deles [não revela quem] e me dava, depois ele passou a comprar roupa para eu fazer negócio." Maria Lidia percorria a região com uma peruca loira e óculos escuros. "Eu parecia uma prostituta", diz, sorrindo.

Sobre ter escapado com vida e mergulhado tanto tempo na clandestinidade, conta que outras três moças também saíram vivas, e lhe disseram que seguiriam para os Estados Unidos. Não revela nenhum nome. Não confirmou também se a fuga se deu durante a Guerrilha do Araguaia ou em alguma guerrilha urbana. Não conseguiu reconhecer as diversas figuras de mulheres da guerrilha, listadas nos relatórios da Comissão da Verdade, que a reportagem pediu que confirmasse, se em algum momento da vida conviveu com algumas delas.

Como Maria Lidia construiu uma vida paralela no sertão tocantino

A advogada colinense Leila Monteiro conta que participou de um grupo de amigos que reuniu pessoas da igreja católica, do judiciário, da Ordem dos Advogados e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), da administração municipal, para ajudar a mulher por um tempo, após a morte de um homem com quem ela dividia o mesmo teto. “Criamos um grupo e ajudamos com a limpeza da casa e conseguimos que um restaurante fornecesse refeições para ela”, diz. 

Em uma das limpezas do quintal e da casa, foram retirados seis caminhões de lixo, segundo a advogada. Entretanto, um episódio desagradável nessa limpeza pode ter contribuído para afastar a mulher  do grupo. Maria Lídia passou a se queixar que escrevera um livro de memórias, a mão, que teria sido jogado fora nessa limpeza. 

Leila Monteiro lembra que Maria Lidia viveu com o empresário mineiro Marco Polo na mesma casa que ainda morava ao ser encontrada pelos policiais.

Marco Polo Cristino Silva era pioneiro em Colinas do Tocantins na construção de muros de lajes pré-moldadas, o mesmo modelo que ainda cerca a casa da Rua 7 com a Perimetral. Há uma empresa em nome dele, A Predial, fundada em 22 de agosto de 1990 e com baixa na Receita Federal no dia 31 de dezembro de 2008.   

Maria Lidia relata ter conhecido Marco Polo em Anápolis (GO), embora não tenha descrito em quais circunstâncias isso ocorreu. A cidade era rota dos movimentos guerrilheiros e abrigou militantes de diversas correntes. O próprio Pedro Tierra lembra que teve a prisão concretizada na cidade, em 1972, embora morasse em São Paulo à época.

Não encontramos registros de nenhuma participação de Marco Polo na militância da guerrilha. Nem Maria Lídia gosta de falar sobre a relação dela com o homem com quem viveu no sertão tocantino.

De Anápolis, Maria Lidia e Marco Polo seguiram para Colinas, ainda norte de Goiás, bem antes da criação do Tocantins, em 1988.  Em Colinas, os dois eram filiados ao MDB desde 14 de fevereiro de 1992.  Certidão da Justiça Eleitoral aponta o domicílio colinense dos dois a partir de 18 de setembro de 1986. 

Marco Polo e Maria Lidia viveram sob o mesmo teto até 2 de janeiro de 2019, quando Silva faleceu, em casa, às 8 horas.  A médica Marlene Rezende anotou como causa de morte, "AVC, degeneração cerebral senil, hipertensão arterial cardíaca e obesidade mórbida".

No atestado de óbito, consta que Marco Polo morreu aos 71 anos, desempregado e solteiro. Solteiro, mas não solitário. A certidão registra que as informações foram prestadas por Maria Lidia Martino no cartório local, dois dias depois da morte de Silva. 

Com a morte do companheiro, Maria Lídia passou a morar sozinha até ser "descoberta" em março de 2020, pela agente Maria Bethania. O intervalo de um ano após a morte do ex-companheiro e os sucessivos ataques à residência, podem ter desencadeado na idosa a vontade de sair da clandestinidade.

Reencontro com a família ao completar 100 anos

A partir do cruzamento de dados e nomes que Maria Lidia fornecera, os policiais colinenses iniciaram a saga para localizar parentes. O agente Luiz Costa Júnior localizou um nome em São Paulo. Na primeira tentativa, com a prudência para evitar que soasse como trote, ouviu rispidez na interlocução. “Eu pensava que iria achar um parente para se interessar por ela, mas não houve interesse. A pessoa que atendeu pensou que a gente queria jogar uma carga nas costas dela, e não se interessou. Desligou o telefone na minha cara.”

Na segunda tentativa, conseguiu contato de uma sobrinha. Filha da irmã mais velha de Maria Lidia, que havia deixado rastros de uma declaração de imposto de renda em Andradas, Minas Gerais, a quase 500 km de Belo Horizonte, onde havia morado. Leila deu ouvidos ao agente.  “Logo de cara eu senti o coração bom dela. Ela me dizia, se for minha tia eu quero para mim”, conta Júnior.

A sobrinha mobilizou a irmã, a produtora musical Luciene Anacleto, 53 anos. Luciene acionou o primo, Claudiney Ferreira, 62, jornalista cultural em São Paulo.  Unindo datas, nomes e fio de relatos dispersos da memória coletiva familiar, todos acreditaram que Maria Lídia era, na verdade, Leonor Carrato.

A notícia alvissareira da descoberta de Leonor em meio à pandemia do coronavírus promoveu uma articulação da família para resgatar a Nô, como Leonor Carrato era lembrada pela família, que jamais havia tido qualquer contato com a mulher que desaparecera para se integrar em movimentos políticos contra a ditadura militar iniciada em 1964.

Mineira, Leonor se mudou menina para São Paulo. Na juventude, deixou a família para lutar contra a ditadura e caiu na clandestinidade. Nunca mais havia mantido contato com a família que abandonara em São Paulo. A última pessoa que visitou antes de desaparecer foi a sobrinha Terezinha, mãe do jornalista Claudiney, que estava com 10 anos.

“Ela é uma pessoa do imaginário da família. A Nô abandonou a família em 1967 por militância política. Viveu em São Paulo, viajou pela Europa na Tchecoslováquia e Itália. Voltou, mas nunca procurou a família”, lembra.

O jornalista conta que em algum momento da história, a família ficou sabendo que Nô estaria no Estado de Goiás. A busca não deu resultados porque ela já devia estar usando outro nome.  O jornalista afirma que Nô possuía glebas de terra e era da parte mais afastada de seus familiares. “A família a deu por desaparecida na década de 1980”, relembra Ferreira, que participou da mobilização familiar para que Luciene viajasse de carro, na companhia de um amigo, Juliano Marques, os quase 2 mil quilômetros de São Paulo a Colinas do Tocantins, para resgatar a tia. Em razão da pandemia, optaram por automóvel no lugar do avião.

“Eu sou a sobrinha caçula e fui a única a não conhecer a Nô. Então, estava na quarentena e a Leila me ligou. Falou da tia Leonor, mas a gente ficou: será que ela mesma?”, diz a produtora, que antes de cruzar quatro estados para o resgate, tomou uma precaução.

Ainda em São Paulo, Luciene fez uma chamada de vídeo para os policiais com participação da tia, mesmo com a dificuldade em enxergar, em razão de catarata nos dois olhos. Para evitar qualquer burla, Luciene fez perguntas diretas à mulher sem combinação prévia com os policiais. Onde ela nasceu. Como era o nome dela. Onde estudava. O que os pais faziam e também dados dos irmãos. Então Nô também passou a fazer perguntas para saber quem era a interlocutora. A sobrinha retrucou que era filha da irmã mais velha dela e ouviu o nome da mãe, já falecida, pela voz mulher que se confirmava sua tia desaparecida.

A partir daí, Nô passou a conduzir as perguntas sobre a casa em havia morado, sobre cada um dos irmãos - a maioria já falecida. “E foi assim que decidimos vir buscá-la”, conta a sobrinha, responsável por repatriar a tia Nô, que a família acredita ser uma das últimas clandestinas vivas da luta contra a ditadura.

Luciene chegou em Colinas a tempo de comemorar, na quinta-feira, 16 de abril, os 100 anos da tia, que ela considera guerreira por viver mais de quatro décadas em Colinas sem que ninguém conseguisse desvendar sua história. Reforça o imaginário as condições de abandono em que Nô vivia em idade tão avançada. 

Nô tem uma história que deverá ser melhor aprofundada, além dessa reportagem, apurada desde 18 de abril, quando a notícia do resgate se espalhou no whatsapp. Afinal, confirmada que é centenária, há ainda muito mistério sobre essa mulher que partiu para a guerrilha quase aos 50 anos sem tocar em armas, e ainda impõe o silêncio do sertão sobre seus segredos, sobre suas histórias.

Nô fez boa viagem. Está em Andradas desde a segunda-feira, 27 de abril de 2020. 

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