Atualizada dia 31.3 às 11h20

As agressões, torturas e sequestro de um lavrador negro, de 32 anos, que teriam sido cometidos por três policiais militares do Tocantins estão no cerne da Operação Loteamento Gerais, deflagrada pela Polícia Civil na quinta-feira, 30, que levou à prisão do primeiro-sargento Marlo Soares Parente, de 43 anos, e dos segundos-sargentos do  Artur Figueiredo Pinto, 45 anos, e Pablo Rogério Monteiro Parente, de 43 anos, todos do Batalhão do Choque.

O episódio colocou os militares no cerne do conflito agrário após uma enfermeira do hospital de Novo Alegre, sudeste do Tocantins, ter acionado a Polícia Militar pelo celular da viatura. Era agosto de 2021.

A profissional informou que um homem havia chegado ao hospital a pé com o corpo todo lesionado. Era um lavrador da Fazenda Conceição. Com área total de 5.878,2756 ha, em Rio da Conceição, sudeste do Tocantins. A propriedade vive uma ferrenha disputa fundiária. 

De um lado está uma dupla formada por um médico de Araçatuba (SP) e por um advogado de Salvador (BA). Os dois tentam provar na Justiça a posse e a propriedade do imóvel que afirmam terem comprado em 2014, de antigos donos que viviam no local há quase três décadas. 

Do outro, está o empresário Diego Henrique Gurgel Hosken, 34 anos, e o comerciante Ataídes Melo Paiva, 33 anos, também alvos da operação policial. 

A dupla é apontada pelo médico e pelo advogado como invasora do imóvel desde 22 de abril de 2021. Os dois assumiram a posse da área com base em documentação que lhes repassava o terreno, obtida de uma pessoa identificada como Uderlan Jacinto de Deus.

A Fazenda Conceição faz divisa, nos fundos, com a Fazenda Lagoa Feia, também em disputa judicial por Diego Henrique Gurgel Hosken e Ataídes Melo Paiva com um terceiro grupo de pessoas.

Imóvel em litígio sofreu invasão em 2021

Segundo o boletim de ocorrência registrado sobre a invasão, de nº 00027038/2021, na Fazenda Conceição, homens fortemente armados acompanharam Ataídes e Diego em três caminhonetes e com o apoio de policiais militares.

 “Invadiram a sede da Fazenda, atiraram na cachorra, arrombaram a porta da casa da sede, retiraram as placas de identificação da fazenda, quebraram os cadeados das cancelas”, consta o registro policial feito pelo advogado e médico.

Os novos ocupantes fecharam o acesso às fazendas vizinhas ao bloquear, com homens armados, cercas novas e cancelas trancadas com cadeados, a única estrada existente de acesso, usada há mais de 50 anos pelos fazendeiros locais. 

A estrada parte da Rodovia TO-476, com passagem por duas fazendas e só voltou a ser liberada após uma decisão judicial para garantir, de novo, o direito de passagem a fazendeiros antigos da região.

O litígio da Fazenda Conceição tem decisão deste mês, do juiz Rodrigo da Silva Perez Araújo - o mesmo que autorizou a operação-, para que nenhum dos envolvidos faça qualquer alteração na terra, até a solução do conflito agrário, sob pena de multa de R$ 1 mil por dia, em caso de nova inovação ou construção e limitado a R$ 15 mil.

A identificação dos policiais militares após sessão de tortura e sequestro

As feições militares do conflito ganharam forma e identidade na sede da Fazenda Conceição, no dia 13 de agosto de 2021.

O relato que você vai ler abaixo, o lavrador  torturado deu aos policiais que o acharam em uma unidade de saúde de Novo Alegre, sudeste do Estado, naquela data e três dias depois, quando o confirmou diante do major da Polícia Militar Neumar Gomes Santana, assessor-técnico da Corregedoria da Polícia Militar, no Quartel Geral de Palmas.

O lavrador estava em uma rede na sede da fazenda. Era 5h30 da manhã, quando ouviu os latidos dos cachorros e se levantou. Três homens armados invadiram o local a bordo de uma Amarok preta e se aproximaram do único trabalhador no local naquele momento.

O trio o rendeu e o fez deitar-se no chão, onde o vendou com a própria camisa. Com um facão e um pedaço de madeira, o trio o espancou por cerca de 30 minutos nas costas, pernas, braços e na sola dos pés. 

Em seguida, os homens o obrigaram a desbloquear o celular e entregar para um dos agressores, junto com uma carteira onde havia R$ 1,8 mil.

Os homens o amarraram os pés e as mãos e o ataram em uma árvore, sob a vigilância de um deles. Os outros dois buscaram a picape, depois o colocaram na carroceria, com olhos vendados e imobilizado por cordas. Dois homens subiram na carroceria para vigiá-lo e o carro partiu em direção a Dianópolis.

No meio da estrada, ele foi deitado no assoalho sob uma lona colocada sobre a carroceria. Próximo à Dianópolis, a dupla o retirou da carroceria e o colocou no banco traseiro, do lado direito, sob ameaça de morte para que ficasse em silêncio enquanto passavam pela cidade.

Em Dianópolis, perguntaram o melhor caminho para Brasília, mas indicaram que o deixariam perto dali, pois iriam para a Bahia. Mais tarde, entre Novo Alegre e Combinado, tiraram o lavrador da cabine e o colocaram sentado em uma grota. 

O trio desamarrou o homem e disse que ele só poderia se mexer após contar até 100. Também deixou R$ 100 reais com a vítima, ordenou que comprasse uma passagem para Brasília e saiu com a picape.

O homem retirou a venda a tempo de detectar as características da picape em retirada. Era por volta de 10h30 e ele caminhou por 3 km até Novo Alegre, onde procurou a unidade de saúde, onde a enfermeira decidiu chamar a Polícia Militar.

Um motorista de ambulância ouviu o relato do lavrador para os policiais e disse que tinha visto uma picape semelhante em uma borracharia de Combinado. 

Quando os policiais da ocorrência voltaram, mais tarde, haviam identificado os três militares dentro da picape. Na abordagem, Marlo Soares Parente, Artur Figueiredo Pinto, e Pablo Rogério Monteiro Parente assumiram a identidade militar. Mesmo assim, foram conduzidos para a delegacia.

Ao que tudo indica, a retirada do homem do local tinha o objetivo de facilitar outro ato na fazenda. Enquanto policiais e vítima lavraram o auto na delegacia, outros homens estiveram na sede da fazenda. Saíram de la levando uma picape L200, branca, ano 2007. O furto do carro gerou outro boletim, de nº 00065244/2021, registrado pelo médico e advogado. 

Lavrador reconhece militar e veículo usado na tortura

O boletim policial da tortura e cárcere prviado, entre as dezenas geradas dentro do conflito agrário, fez o caso chegar até a Corregedoria da Polícia Militar, onde o lavrador foi ouvido pelo órgão disciplinar da PM, e ficou frente aos três militares entre 12h43 e 16h07 do dia 16 de agosto.

Ao final do depoimento, ficou frente a frente aos três militares que estavam na picape, em uma sala. 

Diferente de três dias antes, na delegacia, quando disse não reconhecer nenhum dos três, o lavrador reconheceu um dos militares, o mais forte. Também reconheceu o carro usado para torturá-lo: a Amarok preta, com a placa QLY 3B10.

A Amarok  TDI automática era um dos itens relacionados no mandado de busca e apreensão cumpridos desta quinta-feira.

Os três policiais militares estão recolhidos no Batalhão de Choque de Palmas, segundo informou o major Júnior, lotado no Batalhão de Choque de Palmas, à Polícia Civil. Os três se apresentaram na noite de quarta-feira, 29, por volta das 20h, na sede do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Palmas, onde se encontram recolhidos.

O advogado que os defende, Paulo Roberto Silva, disse que ainda não teve acesso ao processo e vai se manifestar após ter acesso integral aos autos.

Empresário suspeito deve se apresentar nesta sexta-feira, em Goiânia

Os outros dois alvos principais, Diego Gurgel e Ataídes Paiva, mereceram uma equipe da Diretoria de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado  (Dracco) do Tocantins e da Divisão Especializada de Repressão ao Crime Organizado (Deic) de Goiânia para cumprimento das ordens de prisão e busca e apreensão em Goiânia. Diego não foi localizado, apenas a mãe dele, que se comprometeu a avisar ao filho sobre a operação.

Ataídes Melo Paiva prestou depoimento nesta quinta-feira, na companhia de advogado na sede da Deic, em Goiânia.

O JTO tentou contato com a defesa de Ataídes Paiva, mas não teve sucesso.

O advogado Leandro Freire, de Palmas, que defende o empresário Diego Gurgel, contatou a Polícia Civil e acertou de apresentar o cliente nesta sexta-feira, 31, na sede da Deic em Goiás.

Ao JTo, o advogado afirma não ter tido acesso na integra dos autos das investigações, mas entende que as alegações contra Diego Gurgel "não possuem embasamento jurídico e não são verdadeiras".

Segundo a defesa, o empresário é "um indivíduo íntegro e de reputação ilibada, comprovadamente um empresário e investidor que adquiriu propriedade rural de forma lícita". 

O advogdo afirma esperar que a Justiça observe o princípio constitucional da presunção de inocência e respeite o direito do cliente a "um julgamento justo e imparcial, assegurando que todos os trâmites legais sejam realizados em conformidade com a lei".

Em outro ponto, o advogado quer que seja garantido que sua defesa seja plenamente exercida e no decorrer do processo irá provar a sua inocência. "Reiteramos a importância de uma análise criteriosa dos fatos, em busca da verdade real dos acontecimentos, a fim de se evitar pré-julgamentos  danosos aos envolvidos, nos quais afetam a honra e sua integridade moral."

PM acompanha o caso

Em nota, na quinta-feira, a Polícia Militar afirma que acompanha a investigação e que os três policiais estão "dispostos a colaborar com a justiça no que for necessário, para o esclarecimento da verdade real dos fatos".

Também indicou que a Corregedoria-Geral adotou medidas para instrução do processo administrativo para esclarecimento do caso.