Na mitologia dos indígenas inã (Karajá, Javaé, Xambioá) a divindade transformadora do mundo deles, Kànỹxiwè (lê-se cananxiuê), em um acesso de ira e, para impedir a fuga de guerreiros e suas mulheres, sai quebrando uma por uma cada cabaça com água que levava consigo, até inundar toda a terra, sobrando apenas dois morros onde os índios se refugiaram. 

Esse refúgio é a Ilha do Bananal, uma porção de terras de 20 mil km² formada pela calha do Rio Araguaia com o Rio Javaé. Esse rio é citado por especialistas como “Furo do Bananal” ou “braço menor do Araguaia”, a exemplo da doutora em antropologia pela Universidade de Chicago (EUA), Patrícia Rodrigues. 

Segundo a tese defendida há 12 anos, o Rio Javaé chegou a ser mais utilizado pela navegação que o próprio Araguaia, no fim do século 18 e primeira metade do século 19, devido às dificuldades da outra via, em razão dos ataques de indígenas após a extinção da política de construção de presídios indígenas que haviam sido erguidos à margem daquele rio.

Passados dois séculos da fase áurea do uso do Javaé para transporte fluvial, mesmo em meio à pandemia do novo coronavírus, os biólogos Ennio Painkow Neto, mestre em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável e Júlio César Vaz de Oliveira, especialista em aves, percorreram 283 km no rio, entre Luiz Alves (São Miguel do Araguaia-GO) e o vilarejo de Porto Piauí (em Formoso do Araguaia no Tocantins) e constataram grave secamento do leito do rio em cerca de 105,5 km do trecho total navegado.

Em um dos trechos mais críticos, não havia uma gota de água sequer para deslizar os caiaques. “Nós levamos 4 dias para transpor 10 km de areia, transportando as tralhas e os três caiaques usados na expedição, e pernoitando no próprio leito seco do rio”, conta Ennio Neto.

A viagem faz parte do Projeto Expedições Maieli, criado pelo biólgo e amigos, em 2016. Nasceu como uma aventura, mas o saber científico conquistado pelos amigos com a graduação e pós-graduação, mudou o escopo, e as viagens passaram a ter por objetivo principal registrar a biodiversidade e a situação ecossistêmica atual dos rios que formam a Ilha do Bananal.

Naquele ano, o percurso foi dos vilarejos de Porto Piauí (Formoso do Araguaia) até a Barreira da Cruz, em Lagoa da Confusão, um trecho de cerca de 230 quilômetros de Rio, quando o relatório detectou a presença de captação de água sem regulação e presença de bombas, sem autorização. 

Assim como fez em 2016, o projeto entregou para o Ministério Público do Tocantins (MPTO) as constatações que os biólogos apontam como “preocupantes" e que consideram como causas principais do assoreamento e secamento do rio.

“Notamos a bovinocultura extensiva desordenada em todo trajeto percorrido, com registro de gado e vestígios diretos da atividade, como pisoteio e fezes nas APP’s e no leito do rio. Também detectamos o mesmo problema dentro da Ilha do Bananal”, afirma Neto. 

A dupla aponta também a degradação do solo, formações de processos erosivos, carreamento de sedimentos para o leito do rio, assoreamento e contaminação da água. 

Outro problema detectado pelos biólogos é o desmatamento em pontos esporádicos, com derrubadas antigas e atuais da vegetação nas margens do rio. Segundo, Neto, a atividade é derivada da bovinocultura, para formação de pastos. O biólogo aponta ainda as queimadas irregulares para formação de pastagens. “Nós estamos em uma estação sazonal propícia a incêndios, o que potencializa a chance da propagação de queimadas para dentro da ilha.”

Várias imagens da expedição mostram gado na ilha, e nas praias, atravessando o rio. “E isso também provoca assoreamento. O material que que está no montante, no platô, na área mais alta, acaba sendo levado para dentro do rio e causa a diminuição de sua profundidade”.

Neto aponta soluções por considerar que a prática pode ser útil para os indígenas. “A gente sabe que não é apenas o não índio que está produzindo gado, mas os índios também. E é preciso o manejo correto, por exemplo, com a adoção do sistema de rotação de pastagens que, por sua vez, resulta no aumento da produção sem degradar o solo, diminuindo assim o impacto ao meio ambiente”.

Segundo o biólogo, esse tipo de manejo pode ser associativo. “O manejo consorciado com o cercamento das APP’s pode fazer com que o sistema hídrico do Rio Javaé fique protegido da maior parte dos impactos provenientes da bovinocultura”.  

Outra sugestão “imprescindível”, segundo Neto, é a utilização adequada da água do rio para o gado. “Existem técnicas avançadas de produção atreladas a sustentabilidade que garantem o uso ordenado dos recursos hídricos não só na pecuária de corte, mas também no agronegócio. Eu acredito que a produção sustentável seja a solução do problema do secamento no Rio Javaé”, afirma.

“O rio está seco. O maior problema da entrada do Rio Javaé são os bancos de areia que se formaram no leito do rio, por conta do assoreamento. Os sedimentos que foram depositados na entrada do Rio Javaé aí interrompe a passagem de água do Araguaia para o Javaé, no período seco, há vários anos", afirma, ao explicar o perímetro problemático. "É uma seca de mais de 105 km, até o Javaé encontrar o Rio Verde, na famosa barra do Rio Verde, onde o rio se alarga mais um pouco.” No trecho, a dupla viu os efeitos na fauna."Vimos tartarugas presas na areia porque não tinha água. A gente viu boto quase encalhado, com a parte dorsal do animal inteira fora da água. Realmente um desastre ambiental. Muito complicado.”.

Especialista aponta o risco para aves com status de ameaça de extinção muito elevado

Especialista em aves, Júlio César Vaz de Oliveira participa da expedição que batizou em homenagem ao avô, já falecido. Segundo ele, Ismael, morador de Orizona (GO) conhecido como “Maieli” era um homem sábio e, mesmo sem estudar ciência, era conhecedor da natureza na forma empírica. Sabia o nome de todas as aves somente pela vocalização (o canto). Maieli também possuía uma experiência ímpar em sobreviver no Cerrado apenas dos recursos naturais disponíveis como pesca e plantas nativas.

O neto herdou a paixão pelas aves e, após a nova jornada, vê risco para inúmeras espécies com status de ameaça de extinção. “Se a situação ambiental não melhorar e a pressão humana na região não diminuir, podemos ter a extinção local de algumas espécies, diminuição populacional e afastamento de espécies que usam a região como apoio ou destino de migração”. 

Oliveira cita a presença de águias pescadoras, que se reproduzem na América do Norte e migram para região da Bacia do Araguaia e Pantanal, em determinadas épocas e destaca outras espécies que ele observou na expedição. “A garça da mata, pato corredor, jacu de barriga castanha, mutum de penacho e até o tiê-bicudo, que tem status de ameaça muito elevado, sendo encontrado principalmente na Bacia do Araguaia e no Pantanal, restrito a pequenas populações. ” 

“A possibilidade da maior ilha fluvial do planeta sumir muito nos entristece, não só esse título pode desaparecer, mas também as populações humanas que ali vivem. Fonte de alimentos e berço reprodutivo de inúmeras espécies dependem hoje, com muita urgência, de intervenções que visem a conservação do Rio Javaé”, apela.

O rio faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Formoso e, segundo a divisão hidrográfica da Agência Nacional de Águas (ANA), a bacia tem área de drenagem de 21.328,57 km², maior que a própria área da Ilha do Bananal. Representa cerca de 7,7% da área total do Estado do Tocantins e 5,6% da bacia do Rio Araguaia.

Abrange 21 municípios, apenas três em Goiás (Porangatu, Novo Planalto e São Miguel do Araguaia, que detêm menos de 3% de toda a bacia) e outros três no Tocantins Fátima, Oliveira de Fátima e Pium (com 0,02%) são praticamente excluídos da lista dos 15 considerados integrantes da bacia.

Ministério Público atua em frentes de irrigação e de desmatamento 

A dupla levou ao Ministério Público as constatações da expedição, em relato protocolado na Promotoria de Justiça Regional Ambiental da Bacia do Alto e Médio Araguaia, a cargo do promotor de Justiça Francisco José Pinheiro Brandes Júnior.

Brandes Júnior abriu procedimento e requisitou ao coordenador das expedições Maieli o relatório científico das observações. Ao mesmo tempo, requisitou ao Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) uma análise técnica da região. 

“Essa região entre Lagoa da Confusão e Formoso do Araguaia, onde se concentram os projetos de irrigação, a gente já tem elementos de que provavelmente a gente vai ter falta de água como nos anos anteriores, então preciso casar esses dois materiais técnicos para ter noção como o a Bacia do Araguaia e a Bacia do Rio Formoso vão se comportar nesse período seco, que vai até setembro”.

O promotor ressalta as linhas de atuação na região da Bacia do Rio Formoso, à qual pertence o Rio Javaé, e à Bacia do Rio Araguaia. O Rio Formoso, importante afluente do Javaé tem n irrigação uma das frentes do Ministério Público, que mira a da captação de água por grandes fazendas. 

Nessa frente, uma das ações judiciais do Ministério Público do Tocantins conseguiu decisão judicial que suspende as outorgas, a partir do dia 31 de julho deste ano, e levou os promotores Brandes Júnior e Juan Rodrigo Carneiro Aguirre a recomendarem, no dia 6 de julho, que o Naturatins fiscalize e autue todo fazendeiro que faça a captação de água dos rios da bacia hidrográfica do Rio Formoso do Araguaia, fora do período permitido pelas outorgas. 

 

Brandes cita relatório técnico do órgão com indicativo de que faltará água por lá, situação já presenciada em anos anteriores. A análise técnica do órgão compara outro rio importante, o Formoso, e mostra como o uso de barragem para fins de irrigação reduz drasticamente o volume de água após a barragem de Canaã e aumenta antes. A observação do espelho d’água por satélite antes e depois da operação do barramento mostra que já há redução do curso d’água. 

Os técnicos que assinam o parecer querem uma vistoria local e apontam que devido ao atraso no início do plantio da soja devido às chuvas “tardias” neste ano, há pedidos dos fazendeiros irrigantes para ultrapassar a data de 31 de julho para a suspensão da captação. 

Outra ação mira o próprio órgão ambiental e quatro fazendeiros por operar com a subirrigação com imensas quadras e canais de irrigação agrícola sem licença ambiental e outorga de captação para plantio e sistematização ilícita de aproximadamente 4.766 hecatres na Bacia do Rio Formoso.

Segundo o promotor Brandes, há cerca de 100 bombas identificadas. “Cada bomba tem capacidade de abastecer a capital”, informa, citando estudos da Universidade Federal do Tocantins (UFT). O órgão também pediu que o Comitê da Bacia do Rio Formoso não peça ao Naturatins a prorrogação das outorgas de captação de água de propriedades rurais listadas pelos promotores. 

Na frente contra os desmatamentos, Brandes cita ação ajuizada em maio contra o Naturatins e 12 produtores acusados de desmatamentos ilícitos de 4274 hectares em Área de Preservação Permanente e Área de Reserva Legal. A área derrubada é usada para plantio em áreas ambientalmente protegidas.  

O pedido é que a Justiça determine a suspensão das licenças e autorizações ambientais concedidas aos fazendeiros junto com a suspensão das outorgas de captação de água.  Também é pedido que seja determinada ao Naturatins a análise dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR´s) dos 12 alvos, incluindo vistoria. Também é pedido que eles sejam impedidos de praticar qualquer atividade agrícola nas áreas desmatadas e obrigados a cercar e iniciar a recomposição das áreas degradadas.