Nem bem passou pelo crivo do Senado, a proposta do governo que limita a expansão do gasto público pelos próximos 20 anos corre o risco de terminar na Justiça.

Na discussão desta quarta (9), na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, parlamentares da oposição prometeram questionar a legalidade da norma no Supremo Tribunal Federal.

"A oposição apresentará proposta de referendo se for derrotada no voto em relação à PEC [do teto do gasto]", disse Randolfe Rodrigues (Rede-AP). "E iremos, se necessário for, até o Supremo Tribunal Federal para pedir a inconstitucionalidade dessa proposta de emenda constitucional."

A proposta -que limita o crescimento dos gastos à inflação do ano anterior- passou na comissão com maioria dos votos, mas a oposição argumenta que o teto fere pelo menos três princípios da Constituição. Os parlamentares se basearam em análise do advogado Ronaldo Vieira de Araújo Júnior, da consultoria legislativa do Senado.

Segundo Vieira, a proposta não garante que as áreas de saúde e educação, cuja proteção orçamentária está prevista na Constituição, não perderão recursos.

O especialista levantou o argumento jurídico da "vedação de retrocesso" para criticar a medida. Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele disse que, na disputa por recursos e na impossibilidade de se cortar gastos previdenciários, essas áreas poderão ser prejudicadas.

"Se preservar os gastos com saúde e educação, como prevê a Constituição, e levar em consideração outras despesas que são incomprimíveis, como a Previdência Social, a conta não vai fechar", disse.

"Por óbvio a necessidade de limitar os gastos de uma forma global do governo inclui a necessidade de se reduzir também os gastos com saúde e educação."
A equipe econômica rejeita o argumento e afirma que as duas áreas serão protegidas, pois deverão receber, no mínimo, o mesmo valor de 2017 mais a variação da inflação. Também será permitido ao Congresso destinar mais recursos para as pastas, desde que haja corte em outras áreas.

SAÚDE E EDUCAÇÃO

O constitucionalista Oscar Vilhena, da FGV Direito de São Paulo, também demonstra preocupação com os gastos nas duas áreas.

"Ao criar um novo regime fiscal, ele [governo] coloca em risco que os investimentos mínimos em educação e saúde, previstos na Constituição, sejam realizados. Ao fazer isso, reduz a possibilidade de plena realização desses direitos", disse.

"Para uma determinada doutrina constitucional, isso significaria uma restrição a um direito fundamental."

Vilhena, contudo, discorda dos demais argumentos de Vieira.

Um dos pontos críticos, para o consultor legislativo, é que, ao limitar por 20 anos a expansão dos gastos, a regra limite a capacidade de o gestor atender as demandas pelas quais foi eleito. Dessa maneira, tanto o político quanto o eleitor teriam os seus direitos desrespeitados.

Para ele, se o desequilíbrio orçamentário deriva de queda de receitas e aumento de despesas, o governo está violando o princípio da razoabilidade ao centrar todo o esforço no corte de despesas.

"A PEC não trata em nenhum dos seus parágrafos sobre como aumentar a arrecadação", disse Vieira.
"Sem dúvida é necessário gerenciar a despesa, mas não é razoável que um problema de duas vertentes [receitas e despesas] seja atacado apenas por uma delas", diz ele.

O terceiro eixo da crítica de Vieira é o desrespeito ao princípio constitucional da independência dos poderes, uma vez que a proposta enquadra no limite de expansão do gasto público as despesas com folha de pagamentos de servidores, aposentadorias e expansão dos serviços do Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública.

Segundo ele, nos últimos anos a Defensoria Pública expandiu o número de varas no interior, o que pressupõe mais gastos com funcionários e defensores.
O argumento de Vieira é que a discussão orçamentária anual já dispõe de dispositivos que possibilitam a redução do gasto, sem a necessidade de um limite. O diálogo entre os poderes e a escolha sobre em que gastar pode ser feita hoje, diz.

"[O teto] criará uma guerra fratricida por recursos", afirma ele, antevendo que demandas cairão no colo de juízes pedindo para que essa ou aquela despesa fiquem imune ao controle do governo.

"Se uma família recorrer ao Supremo alegando que, com a limitação orçamentária, um filho estiver passando fome ou violência num presídio federal, o juiz pode decidir em seu favor, sob o argumento da garantia de dignidade", diz.

Em cadeia, essas demandas poderiam gerar ineficiência na gestão pública.

"O ponto de vista do juízo é a demanda individual, não o equilíbrio orçamentário."

NO SENADO

Os argumentos do advogado foram encampados por senadores da oposição na votação na CCJ. Roberto Requião (PMDB-PR) foi um dos que mencionou o risco de inconstitucionalidade da proposta do governo.

Os parlamentares propuseram 59 emendas ao texto do teto, mas nenhuma foi aceita pelo relator, senador Eunício Oliveira (PMDB-CE).

Parlamentares ligados ao governo criticaram, nos últimos dias, o relatório do consultor o acusando de alinhamento com os partidos da oposição. Vieira trabalhou na assessoria jurídica da Casa Civil em 2003 e na Advocacia Geral União entre 2007 e 2010, durante a gestão do ex-presidente Luiz Inácio da Silva (PT).

O consultor afirmou que não é filiado a nenhum partido e rejeitou a ligação entre a análise e seu trabalho no governo.

"Não vejo críticas à trajetória pessoal de analistas que se posicionam a favor do governo", disse, acrescentando que, em sua opinião, todo trabalho intelectual leva alguma dose de subjetividade.

"Cada um leva para o seu trabalho as suas 'circunstâncias'. Todo debate pressupõe análises que sejam feitas de todos os lados."