Um esquema de grampos dentro da própria Polícia Civil, contra policiais civis, a pedido de policiais civis que atuaram de forma antagônica numa investigação de roubo de máquinas de construção civil no Tocantins, em junho de 2018, revela a prática de “barriga de aluguel” – espionagem telefônica clandestina –  e expõe tensão e conflito entre delegacias no Tocantins.

Conhecida como “barriga de aluguel” no jargão policial, essa prática de espionagem clandestina ocorre quando um ou mais números de telefones de pessoas que serão monitoradas de forma ilegal são inseridos em um pedido de interceptação telefônica autorizado pela justiça, sem que a pessoa possua relação com o caso investigado. A confirmação da escuta clandestina aparece em uma investigação da Corregedoria da Polícia Civil aberta contra policiais de Gurupi, à qual o JTo teve acesso. 

A espionagem se refere à “Operação Grajaú”, da Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos de Veículos Automotores (DERFRVA) de Gurupi. A delegacia recuperou dia 23 de junho do ano passado, em Bom Jesus das Selvas, no Maranhão, uma escavadeira e um trator de esteira, além da prancha usada para transportá-los, avaliados em mais de R$ 800 mil. Os bens haviam sido roubados dia 9 de junho, na Rodovia BR-153, em um posto próximo a Nova Olinda, quando o motorista ficou em cativeiro por quase 12 horas.

Na apreensão das máquinas no Maranhão, além dos agentes da DERFRVA de Gurupi, participaram policiais da delegacia de Colinas, ambos mobilizados na investigação pelo gerente da empresa que teve os veículos roubados, identificado pela Polícia Civil como Aloísio de Abreu Martins de Paiva Júnior.

Grampos ilegais

Na documentação, um ofício de operadora de telefonia para a juíza Joana Augusta Elias da Silva, da Comarca de Gurupi, de 29 de maio deste ano, aponta que uma delegada de Colinas do Tocantins, incluiu por pelo menos três vezes, entre junho e julho do ano passado, antes e depois da operação no Maranhão, o telefone de um agente da DERFRVA de Gurupi, para ser monitorado em inquéritos que tratavam de outras investigações. 

A operadora confirma que entre 15 de junho a 19 de junho, a partir de pedido feito com a senha da delegada, um celular usado pelo policial esteve programado para acompanhamento de extrato em tempo real - quando mensagens (SMS), localização e extrato de ligações são repassados para o terminal fornecido pela autoridade.  

O processo no qual a delegada pediu o grampo é uma ação penal, de 1º de fevereiro de 2018, sobre roubo e corrupção de menores que tem como réu Salmon Alves da Silva, julgado e condenado a 8 anos de prisão em dezembro do ano passado. O processo (0000474-26.2018.827.2713) pode ser conferido aqui.

O documento da operadora aponta ainda que outra senha, de Palmas, também grampeou o telefone do mesmo agente para acompanhamento em tempo real de 3 a 17 de julho de 2018, através de ordem judicial da 4ª Vara Criminal de Palmas. Nesse caso, o processo em que ocorreu o grampo é sobre tráfico de drogas.

A mesma senha também solicitou os dados cadastrais no dia 3 de julho, mesma data em que pediu todo o histórico de chamadas de 1º de junho de 2017 a 3 de julho de 2018.

Inquérito após operação Grajaú

O policial de Gurupi passou a ser alvo de inquérito aberto pelo corregedor Fábio Simon e o corregedor adjunto Douglas Sie Carreiro Lima dia 25 de junho, dois dias após a operação policial no Maranhão. A abertura do inquérito se deu a partir do depoimento do gerente Aloísio, acompanhado de dois agentes, um deles esposo da delegada de Polícia de Colinas.

A partir desse depoimento, o agente e outros policiais de Gurupi, incluindo a então delegada regional e ex-titular da DERFRVA, passaram a ser investigados por corrupção.

Vítima pagou despesas e ofereceu prêmio

No depoimento que deu início à investigação, o mineiro relata despesas de pelo menos R$ 15 mil para custear as viagens das duas delegacias no encalço dos ladrões. Do valor, R$ 7 mil gastos para bancar as diligências da equipe da delegada de Colinas, e outros R$ 8 mil repassados para a conta bancária do agente polícia monitorado de Gurupi. Aloísio Abreu afirma que este policial teria cobrado diversos valores como prêmio pela localização dos veículos e, ao final, fechado a negociação em R$ 20 mil.

Em seu depoimento, o gerente afirma que compareceu espontaneamente à corregedoria, mas os dados extraídos de seu celular mostram que ele relatou a pessoas próximas em conversas de aplicativos, na véspera de depor, que sofreu coação policial em Colinas para ir depor na Corregedoria em Palmas. 

A um interlocutor identificado no celular como Roberto Diniz ele afirma. "Ou colaboro para prender a polícia corrupta ou posso ser preso por corrupção passiva. E não sou bandido... dessa vez foi ordem direta da delegada".

Para um familiar, a quem ele trata como “amor”, Aloísio avisa que estaria sendo levado a depor em Palmas e pede discrição.  "Não comenta com ninguém aí para não preocupar". A pessoa pergunta do outro lado "pra que mexer com corregedoria". Ele explica. "Do que fiquei sabendo quando vim na delegacia... isso foi ordem. Esse não foi escolha". A interlocutora indaga: "Ordem de quem?? pq ninguem ai pode te ordenar nada. Aloísio responde: “Da Delegada!”

Monitoramento clandestino

Nesse inquérito, aberto apenas contra a equipe de Gurupi, as diversas manifestações das partes indicam que a prática de “barriga de aluguel” pela delegada de Colinas servia para a equipe do norte monitorar as investigações da equipe de Gurupi, pescando informações sobre o paradeiro das máquinas roubadas. 

Já no monitoramento feito a partir de Palmas, as datas indicam que o interesse era monitorar os passos do agente policial, que acabaria preso durante a instrução do inquérito da Corregedoria que apura corrupção passiva e crimes praticados por funcionários públicos contra a administração em geral. 

As mensagens extraídas do celular do gerente mostram que ele estava baseado em Colinas, em atuação conjunta com os policiais de lá, chegando a frequentar a residência deles, mas negociava com o agente de Gurupi, para o qual relatava até as atividades dos policias de Colinas. 

A perícia policial extraiu mais de 2.300 conversas do gerente Aloísio Abreu com várias pessoas. O inquérito, porém, foca apenas nos diálogos travados sobre a negociação com o policial de Gurupi.

Nesses diálogos, o policial de Gurupi revela a localização dos veículos, identifica os alvos que depois acabariam presos na operação e trata de valores da premiação, chegando a fornecer outro número para as ligações, que é o número grampeado pela delegada de Colinas. 

As extrações do telefone do gerente mostram ainda indícios de desvio de finalidade na escuta do motorista do veículo roubado pelos policiais de Gurupi. Segundo a transcrição dos áudios que a Polícia Civil obteve com o monitoramento do motorista, apontando irregularidades na empresa, foram repassados ao gerente. Aloisio depôs em Palmas e seguiu para Minas de avião, deixando seu veículo para ser levado por transportadora.

Outro lado

O JTo acionou a Secretaria da Segurança Pública na quinta-feira da semana passada para saber a posição do órgão em relação a essas escutas clandestinas e se há inquéritos aberto contra os responsáveis por elas em Colinas e Palmas. Também perguntou se em relação ao episódio do roubo que deu origem à barriga de aluguel, se apenas os policias de Gurupi estão sendo investigados pela Corregedoria. Não houve respostas.