A palavra carnaval tem origem do latim. É a junção das palavras “carnis” e “lavale”, um período que antecede a Quaresma no calendário Católico, ao qual os fiéis devem dedicar tempo para "lavar a carne" ou "retirar a carne". Por ironia ou não, os três dias de festa reservados pela Igreja ao controle do prazer mundano bandearam-se justamente ao contrário.

O Carnaval é hoje uma celebração da liberdade, da fuga da rotina, do aproveitamento do melhor que o mundo tem e oferece aos foliões. E quanto aos amores de carnaval? Relações que traçam sua narrativa em apenas três dias de ápice, calcadas no descompromisso com o resto do ano.

Nesse cenário se ambienta a letra da canção Retalhos de Cetim, composta por Benito Di Paula. Na história, um sambista "ensaia o ano inteiro", "compra surdo e tamborim" a espera de sua amada cabrocha, que jurou desfilar para ele no Carnaval. Mas, diante da promessa descumprida, o homem apaixonado chora em plena avenida, desolado pela frustração de seu romance carnavalesco.

Aqui, é interessante a análise de contexto. O relato do eu lírico gira em torno daquilo que foi “gasto” pelo amor. Em determinado momento da letra é dito até que o protagonista “gastou tudo em fantasia”. Nesse ponto, é traçada uma metáfora entre aquilo que foi dado financeiramente e o que foi despendido do valor emocional, sendo as duas dedicações destinadas à "fantasia", seja no plano material - pelas fantasias festivas- ou no campo romântico - pela não-concretização das demandas de amor.

Fato é que amar também diz respeito a conceder. Mas o que tem a ofertar o indivíduo que vive diariamente em contexto de resistência e em posição de oprimido? É por essa reflexão que se encontra a beleza do relato de Retalhos de Cetim. Tudo diz respeito a dar até o que não se tem, ao desejo de “brindar muito e dividir o pouco”.

Outro exemplo claro dessa contemplação está na letra de “Cotidiano”, por Chico Buarque. Nesta, diferentemente da história contada por Benito, é retratada uma relação que está entrelaçada à rotina. Um amor cíclico, monótono, já quase óbvio e chato.

A música retrata um relacionamento visto da perspectiva masculina tradicional, expõe uma visão em que a mulher está associada ao trabalho doméstico, enquanto o homem sai de casa para trabalhar e prover para o lar. É ele falando sobre ela.

Mesmo assim, o único verso em que o eu lírico toma voz ativa é no que diz respeito a se “calar” quanto ao seu desejo de mudança. O personagem de Buarque está preso ao próprio cotidiano, à jornada da classe trabalhadora carioca do século XX. A canção retrata como isso afeta o seu próprio relacionamento que, sufocado pela exploração da classe dominante, só vê alternativa na mesmice.

Muitas das obras de Chico seguem a mesma perspectiva, como "Construção", de 1971, em que é retratada a vida do cidadão médio denotando a afirmação de sua classe. São histórias sobre a existência de todo um grupo da sociedade e, claro, o amor não pode estar fora disso.

Em também diversas obras contemporâneas se constata essa reflexão. No “Melô do camelô de Copacabana, que namorava uma bandida de Ipanema”, do rapper Xamã. Na música “Se eu não te cantar”, de FBC, que vê a figura da pessoa amada em “todas suas lutas” (de classe, de causa).

Enfim, a luta e a afirmação de classes está presente em todo romance em que os sujeitos têm consciência da própria existência. As batalhas daqueles que estão submetidos aos interesses socioeconômicos de outrem percorrem por todo o campo existencial. Sendo assim, pela perspectiva do oprimido, se faz válida a paráfrase com Paulo Freire. Afinal, “amar é um ato de coragem”.

Pedro Marinho Viana
é acadêmico de Jornalismo da Universidade Federal de Goiás