A discussão sobre o denominado “marco temporal” pode ser finalizada esta semana pelo Supremo Tribunal Federal. O tema é complexo, e a importância do julgamento vai muito além dos direitos e garantias consagradas pela Constituição Federal de 1988 em favor das comunidades indígenas e povos tradicionais e abrange aspectos jurídicos e econômicos de grande relevância, com reflexos direto na área social e, especialmente, ambiental. Esse contexto inflama o debate que tem importante interesse do empresariado ligado ao agronegócio e à mineração. 

Com efeito, a demarcação de terras indígenas é um desafio que o Governo Federal tem enorme dificuldade em apresentar uma resposta satisfatória, seja à sociedade de modo geral, seja em relação as comunidades indígenas de maneira mais específica. Hoje a Fundação Nacional do Índio se debate com quase 250 processos pendentes sobre demarcação de terras indígenas, número que segundo associações e ONGs ligadas a causa indígena seria muito superior. Falta orçamento e, consequentemente, pessoal especializado nos quadros da Funai, algo na mesma linha do que acontece com o IBAMA, diante de um desmonte institucional e estratégico que ultrapassam décadas de absoluto desinteresse pelo tema nos governos que se seguiram. 

É quando tangenciamos o tema ambiental que conseguimos trazer a lume a importância da demarcação e proteção das terras indígenas que representam algo em torno de 12% do território nacional – número verdadeiramente significativo pois isso equivale ao território da França e Inglaterra somados -, mas que suporta somente 1,6% do desmatamento ilegal registrado nos últimos anos. Do ponto de vista ambiental, dos tratados e acordos internacionais subscritos pelo Brasil, isso significa que garantir de forma plena os direitos originários às terras tradicionalmente ocupadas (art. 231, CF) responde ao interesse coletivo nacional e global, além de, é claro, das comunidades indígenas que ainda lutam pela demarcação de seus territórios. 

Nesse contexto, de absoluta incapacidade da Administração, em todos os seus níveis, em combater a degradação ambiental que nos afronta diariamente – e aqui lembras do vídeo que circula nas rede sociais desde de o último dia 28 mostrando trecho do Rio Javaé, em Formoso do Araguaia, completamente seco -, uma decisão firme (e unânime) do Plenário do Supremo Tribunal Federal seria um alento para a combativa comunidade indígena e para parte importante da sociedade brasileira que tem sensibilidade para constatar que a espiral de degradação ambiental que nos encontramos trará consequências ainda mais devastadoras a curto prazo. 

Embora 20% do território brasileiro já esteja ocupado por pastagens e o desmatamento ilegal mantenha crescimento vertiginoso ano após ano, a dificuldade enfrentada pelas grandes potências econômicas para consolidar a produção de energia limpa, frente a uma demanda crescente, em especial a da China, a decisão da Suprema Corte brasileira poderá ter a médio prazo importância geopolítica de grande relevância para o Brasil no contexto internacional. Ainda que hoje essa perspectiva seja pouco valorizada por setores governamentais e empresariais, nosso território ainda detém, por exemplo, 12% da agua doce existente, parte importante dentro de reservas indígenas, e com uma decisão que derrube de uma vez por todas a tese do “marco temporal” a importância brasileira no equilíbrio ecológico global pode se manter relevante a médio e longo prazo. 

Por óbvio que não se olvida dos interesses dos agricultores catarinenses que teriam adquirido as terras junto ao Estado, nesse caso específico da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, mesmo destacando que o parágrafo 6º do mesmo art. 231 da CF já pronuncia a nulidade de tais dos contratos firmados tendo como objeto terras tradicionalmente ocupadas, será perfeitamente viável, técnica e juridicamente, que o Supremo estabeleça, no mesmo acordão, o prazo para a desocupação da área e o direito de indenização dos agricultores prejudicados. 

O voto condutor do Ministro Edson Fachin, já amplamente divulgado, não deixa margem de dúvida do ponto de vista constitucional: a tese do “marco temporal” não tem embasamento legal mínimo e, portanto, não deve se sustentar perante o Plenário, por mais forte que sejam as pressões políticas e de parte do empresariado. De outra banda, a orientação lançada no voto de 109 laudas, também não permite que o processo demarcatório seja feito de forma discricionária e sem o respeito a padrões técnicos, em especial do ponto de vista antropológico, ou seja, impede que as áreas demarcadas, ou a serem demarcadas, superem aquilo que realmente representa o direito originário dos povos indígenas (art. 231 CF), evidenciando ainda que, dentro do devido processo legal, poderá ocorrer o redimensionamento das terras demarcadas, garantido direito a posse tradicional indígena e o direito fundamental à propriedade particular também salvaguardada expressamente na Constituição.