Elaine Jesus Alves
Doutora e pós-doutora em Ciências da Educação pela Universidade do Minho, Braga PT. Pós-doutorado em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal do Tocantins. Autora do livro "Por que não consigo ensinar com tecnologias nas minhas aulas", disponível para download gratuito no site da editora FI. 
 
Estamos a viver o que Edgar Morin (2011) descreveu como cenário de incertezas históricas. O autor destaca que educar num cenário de incertezas fazia parte dos ‘sete saberes’ necessários para a educação do futuro. Morin ao refletir sobre a educação do século XXI notou algumas lacunas na educação que por anos estavam sendo ignoradas, e que precisavam ser chamadas à atenção. Diante do cenário atual, observamos que a pandemia revelou muitas lacunas pré-existentes que tomaram proporções maiores com a suspensão das aulas e necessidade do improviso com aulas remotas. Uma destas lacunas diz respeito ao despreparo do sistema de ensino, das  instituições educacionais e dos professores no que diz respeito a integração das tecnologias nas práticas pedagógicas. Embora esta não seja uma discussão recente (as tecnologias digitais estão presentes nas escolas há mais de 30 anos), neste momento crítico de suspensão de aulas e improviso de educação remota, as tecnologias ganharam holofotes a medida que os professores revelaram sentirem-se despreparados para usá-las para mediar suas aulas.
 
Morin apresenta uma pista de como lidar com as incertezas: no primeiro momento se toma uma decisão, mas depois se deve estabelecer uma estratégia.   Para isso, segundo o autor, é preciso elaborar “um cenário de ação que examina as certezas e as incertezas da situação, as probabilidades, as improbabilidades” (p.90). A princípio, na incerteza de quando a pandemia iria acabar, o Ministério da Educação (MEC), seis dias após a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarar a COVID-19 como pandemia, decidiu emitir a Portaria 343 autorizando em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação nas universidades públicas e institutos federais. Nos âmbitos de governo estadual e municipal a decisão foi descentralizada, cabendo a cada sistema de ensino local definir de que forma as aulas suspensas seriam realizadas. A maioria dos sistemas de ensino estadual e municipal decidiu por suspender o calendário e aguardar. No entanto, era preciso criar uma estratégia para um possível retorno. O exame das certezas e das incertezas do cenário emergiram algumas problemáticas. A transposição do ensino presencial para o ensino a distância chamando-o de ensino remoto revelou realidades que sabíamos, mas que estavam veladas como: o despreparo do professor (sem formação adequada e equipamentos adequados para gravar suas aulas), o despreparo do aluno que não vê as tecnologias como ferramenta de estudos, e a brecha digital que existe entre os usuários (professores e alunos), pois muitos acessam internet apenas pelo celular (redes 3G)  e não possuem equipamentos e  internet que suportam acessos a vídeos e web conferências (aulas online síncronas).
 
A partir destas certezas constatadas pelos professores e alunos nos primeiros noventa dias de pandemia, podemos pensar nas probabilidades e improbabilidades. Enquanto não houver vacina, o fato é que as aulas presenciais como eram realizadas não poderão retornar. A probabilidade de formar todos os professores para o retorno com aulas híbridas (presencial e a distância) pode ser considerada em longo prazo. Há de se formar os alunos também para que tenham literacia digital (habilidades de acesso, uso crítico e responsável; capacidade de síntese e trabalho colaborativo). A mais difícil das probabilidades é promover o acesso a todos os brasileiros à internet, assegurado no Marco Civil da Internet (LEI 12.965/14) como essencial para o exercício da cidadania. Dados da Pesquisa TIC Domicílios (2019) sobre uso de internet no Brasil revelam que cerca de 47 milhões (20%) de pessoas no país não tem acesso à rede. A pesquisa ainda aponta que 58% dos brasileiros acessam a rede exclusivamente pelo telefone móvel, proporção que chega a 85% na classe D e E. Posto o cenário, é preciso pensar numa estratégia que contemple a todos, mesmo os desconectados à rede.
 
Pensando em estratégias para formação do professor para o uso das tecnologias neste momento emergencial, urge compreender o “ensino remoto” que está sendo realizado nos primeiros três meses de pandemia. As aulas estão sendo ministradas “ao vivo” para os estudantes em diferentes plataformas virtuais usando o tempo em que os estudantes estariam em sala de aula. Alguns professores têm improvisado e gravado vídeo-aulas para os alunos usando seus próprios celulares. As atividades são enviadas para serem realizadas em outro período pelos estudantes. O que tem ocorrido na prática? Os professores se queixam de cansaço mental e emocional na tentativa de manter os alunos atentos às aulas. Também alegam não serem youtubers ou profissionais de design para editar vídeos. Os alunos sentem-se esgotados com as aulas virtuais e o grande número de atividades.
 
Como romper com essa lógica? A mudança começa no professor. Nas formações de professores, as tecnologias sempre foram retratadas como ferramentas para transmitir/reproduzir informações. Portanto, os professores encontram dificuldades em usar o potencial das tecnologias para o trabalho colaborativo, coletivo e com ênfase na pesquisa e  co-autoria dos estudantes. Assim, a formação docente ideal seria a que contempla o professor como curador de informações, mentor de pesquisas, co-autor em investigações, orientador do percurso acadêmico. Com este perfil, o professor destinará pouco tempo de sua aula online em aula expositivas, mas aproveitará este tempo para direcionar os estudantes à pesquisa, responder a dúvidas dos estudantes (que já terão tido acesso ao material da aula) apresentar ferramentas digitais possíveis para trabalho colaborativo entre os estudantes. Esta interação não termina com o fim da aula online, mas poderá ser estendida em outros ambientes virtuais em momentos pré-agendados. 
 
Sobre preparar os alunos para essa dinâmica diferente de ensino, também há um desafio cultural já incorporado que precisa ser vencido. Desde os primórdios da humanidade, a educação tem raiz na oralidade do professor. A forma em que a sala de aula está disposta (alunos em fileiras de carteiras), quadro-negro à frente já corrobora com esse modelo de oralidade ainda nos nossos dias. O recurso de webconferência disponibiliza a imagem dos alunos lado a lado na tela o que favorece a discussão e a possibilidade de interação.
Por outro lado, para muitos alunos, esse ambiente controlado da sala virtual (síncrona) apresenta-se constrangedor caso precise explanar suas ideias. Os alunos são acostumados também com trabalhos em grupos, neste formato cada um faz a sua parte e as apresentam. No entanto, a construção de WIKI, elaboração de textos compartilhados no drive, sessões de estudo por webconferência encontram resistência dos estudantes. Embora os jovens no senso comum sejam definidos como “nativos digitais” e realizam tudo online, estudar coletivamente e online e construir textos, narrativas e pesquisas colaborativamente ainda carece de formação específica. Uma formação que contemple a importância do uso das tecnologias para inserção no mundo do trabalho e também as competências da literacia digital poderá ajudar os alunos a vencer o desafio de estudar online.
 
O terceiro desafio no cenário de incertezas é o acesso dos professores e dos alunos às tecnologias. Alguns países voltaram a usar tecnologias analógicas como o rádio e a TV para atender aos estudantes que não tinham acesso às tecnologias digitais. Outras iniciativas de instituições de ensino foi disponibilizar material impresso na escola com agendamento para o aluno pegar; disponibilizar chip com internet para o aluno acessar as aulas; emprestar computador/notebook  da universidade, dentre outras. São iniciativas individuais das instituições que são elogiáveis considerando que o governo federal brasileiro não apresentou nenhuma medida estratégica para diminuir essa brecha digital. Devido às diferenças geográficas, culturais e econômicas do país, cabe aos gestores das instituições de ensino fazerem um levantamento local de uso de internet dos alunos e professores para então planejar formas de possibilitar o acesso à rede. 
 
Para o momento pensamos em estratégias em curto prazo, que podem ser tomadas tão logo seja possível pelas instituições de ensino. No entanto, a pandemia revelou fragilidades estruturais na educação que não devem ser descartadas assim que as coisas parecerem voltar ao normal. Ainda em 2011, o filósofo Zygmunt  Bauman na obra 44 cartas do mundo líquido e moderno afirmou: “em nenhum momento crucial da história da humanidade os educadores enfrentaram desafio comparável ao divisor de águas que hoje nos é apresentado. A verdade é que nós nunca estivemos antes nessa situação. Ainda é preciso aprender a arte de viver num mundo saturado de informações. E também a arte mais difícil e fascinante de preparar seres humanos para essa vida” (p. 25). Passados nove anos desta afirmação, presenciamos um divisor de águas que ficará para a história posterior: a certeza de que a educação não poderá ser a mesma como tem sido há 150 anos. Não deverá ser baseada na oralidade, vertical, conteudista e centrada no professor. Terá que ser horizontal, construída por pares em amplo diálogo e colaboração e centrada na aprendizagem do aluno. Como finaliza Morin (2011, p. 91) “o desejo de liquidar a Incerteza pode então nos parecer uma enfermidade própria a nossa mente”. Portanto, saibamos navegar neste mar de incertezas ora presente, com saúde mental e equilíbrio, criando estratégias possíveis para o enfrentamento dos desafios encontrados, certos de que as incertezas farão parte do percurso de todos os navegantes da vida.
 

Referências:
Bauman, Z. 44 Cartas do mundo líquido moderno. São Paulo: Jorge Zahar, 2011.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarian Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2011.