Não há como falar em língua e em linguagem sem mencionar as conflituosas relações de poder que as envolvem: conformismo e resistência, obediência e transgressão, submissão e rebeldia, porque língua e linguagem não se realizam no âmbito do abstrato, mas atuam na concretude e na complexidade da vida vivida. Em outras palavras, necessariamente, língua e linguagem estruturam e são estruturadas por todas as dimensões enredadas nos laços sociais que envolvem cada um e cada uma de nós, enquanto sujeitos que habitam diversos territórios de disputa: cultura, economia, política, educação, ideologia, arte etc.

Como não trazer à tona, por exemplo, expressões como língua portuguesa e língua espanhola sem levar em conta a matriz forjadora de nossa visão de mundo mais arraigada, qual seja, a linguagem eurocêntrica e falocêntrica imposta pelo homem branco colonizador? O processo de colonização, perversamente arquitetado, atuou em diversos níveis na conquista do que, posteriormente, ficou conhecido como América Latina: na exploração das riquezas das terras invadidas, na dizimação e dispersão de culturas locais, e, principalmente, para o aspecto que quero dar relevância, na corrupção de consciências e almas. É incontestável o papel cumprido por certo uso da linguagem nesse procedimento desumanizador.

Para o bem ou para o mal, a despeito de existirem mais de 560 línguas indígenas na América Latina, segundo dados do Banco Mundial, somos latino-americanos e latino-americanas por uma simples razão: porque enunciamos os nossos modos de ser, estar e agir em português e/ou espanhol, são nossas línguas oficiais. No entanto, e eis aí a boa notícia, embora estejamos sujeitos à ordem do discurso imposta por nossas línguas mátrias, não há outro espaço/tempo em que sua condição fascista de nos obrigar a falar e a escrever possa ser contestado, transgredido, infringido, desrespeitado, desobedecido, descumprido, rompido e violado, senão, paradoxalmente, na esfera da própria língua, mediante um dispositivo linguístico ambíguo e criativamente surpreendente: a literatura. 

O que tenciono com este texto é, de forma breve, aludir às perspectivas inigualáveis da apreensão e manifestação da linguagem literária nos países latino-americanos. Na impossibilidade de mencionar o imensurável mosaico composto pela diversidade de escritores, escritoras e poetas que, ao longo da história, fizeram da literatura uma manifestação artística imprescindível para a formação política e cultural de nossa Latinoamérica, elejo uma poeta contemporânea, Clarissa Macedo, e um de seus poemas, “Ciencia”, como a metonímia do “Canto do povo de um lugar”, conforme a expressão que dá título a uma bela canção de Caetano Veloso.

Clarissa Macedo é uma poeta baiana, nascida em Salvador e que, atualmente, reside em Feira de Santana. Escreve seus poemas em sua língua mátria, a portuguesa, e elegeu como sua segunda língua, posto que tradutora, a espanhola. Passou, então, a operar a sua poética em dois idiomas: o português e o espanhol. Seria justo afirmar, não obstante, que seus auspiciosos versos, quando urdidos em língua portuguesa, como não poderia deixar de ser, possuem a fluência e a pronúncia da língua portuguesa falada e escrita no Brasil, e, quando os perpetra em língua espanhola, não o faz sem considerar a peculiaridade prosódica e gráfica da língua espanhola de sotaque latino-americano, em especial de países como Peru e Colômbia, onde participou de eventos literários e já teve seus poemas traduzidos e publicados.

“Ciencia” é um dos poemas que compõe Misal o el libro de las falenas, um pequeno livro cuja lírica remete ao luto e à saudade da mãe que ela perdeu durante a famigerada pandemia de coronavírus que acometeu a tantos e tantas. A despeito, todavia, da intencionalidade manifesta pela poeta de como desejaria que seus poemas fossem lidos: uma antologia elegíaca dedicada à sua genitora; uma vez publicados, eles ganham autonomia de sentido diante dos olhos atentos de seus leitores e de suas leitoras. No meu caso, a leitura que nele opero se encaminha pelo viés do que se poderia chamar de uma leitura decolonial, isto é, me aproprio do poema “Ciencia” de Clarissa Macedo como um exercício literário de resistência e desconstrução de padrões, conceitos e pontos de vista impostos pelo regime colonizador europeu aos povos da América Latina.

Contudo, não colocarei a leitura que passo a fazer do poema sob o signo da interpretação, o que me comprometeria na necessidade de demonstrar algo que a linguagem por si só não dá conta de traduzir a partir da experiência vivida. A aposta a que me lanço é o de provocar uma espécie de colapso de sentido no poema, desde a noção psicanalítica de monstração. A princípio porque monstração se opõe à demonstração. Depois, pelo que é produzido por tal movimento: a aparição de um “monstro”, quer dizer, o surgimento do que escapa à normalidade, o estranho, o inquietante, o sinistro que, de forma ambivalente, possui também uma faceta familiar. Em outros termos, trata-se da tentativa de alcançar o que afeta o corpo quando este busca se desvestir de um discurso que anseia por dominá-lo.

Feitas as advertências, vamos ao que o poema monstra.

Ciencia

Alejar a los monstruos del cuarto
requiere ciencia:
esconder-se bajo el edredón
enceder la lámpara
sacarlos de debajo de la cama.

Hay formas de ahuyentar a los monstruos,
incluso a aquellos del armário
que se mueyen al dormimos
y nos miran bajito
como si fueran lentos fantasmas,
viejos de tanto limbo e probación.

Para arrancar a los monstruos es preciso ser                                                               [capaz:
agarrarlos muy fuerte,
para que, en el tormento del abrazo,
revienten de humanidad
y no vuelvan nunca más.

Ao longo do poema, como se fora interpelada por uma grave questão acerca de como se libertar de monstros, não importando a feição e a forma que possuam, a voz lírica, com pendor à mestria, passa a manejar a monstração desse complexo expediente que, a despeito de não poder ser demonstrável, não deixa de promover um potente flerte com o factível.

Desde a primeira estrofe, a voz lírica adverte que, para enxotar os monstros que colonizam o nosso território mais íntimo, há a exigência de que nos apropriemos de uma ciência, de um saber. Trata-se, entretanto, de um saber de dupla vertente: saber de si para saber do outro. A insistência na dinâmica do saber de si vai, aos poucos, desvelando o outro, o monstro, o alien, o estranho familiar que nos parasita. Consequentemente, o saber proposto pela voz lírica é um saber que nos exorta ao lento, doloroso, mas necessário movimento de desalienação.

Desse modo, a ciência a que a voz lírica se refere diz respeito a um saber que reivindica a ação, tornando-se, por esse motivo, um saber-fazer singular: nada mais, nada menos que a irrecusável e intransferível atitude ética, compreendida como a assunção da responsabilidade do agir humano no mundo, delegada a cada um e a cada uma de nós.

De tal saber-fazer ético é que advirá nossa postura diante do mal-estar causado pelos monstros que nos cercam e cerceiam: se, impelidos pelo medo, recorreremos à psseudossegurança de um cobertor; se, munidos de ousadia nos deslocaremos até o interruptor para acender a luz e olhar dentro de seus perturbados olhos; se, providos de coragem, ousaremos puxar pelas pernas as bestas-feras que fazem vigília debaixo de nossos leitos.

A voz lírica, detentora de uma antiga e longeva experiência na perseguição, identificação e captura de monstros, ensina que é insuficiente enxotá-los ou afugentá-los, pois, embora possam se ausentar por algum tempo, concedendo-nos a falsa alegria de uma paz provisória, sempre retornam, tão mais contumazes opressores do que já foram um dia.

Por essa razão, para a voz lírica, não há senão uma solução para nos libertarmos de tais monstros, qual seja, a de destemidamente ir ao seu encontro, agarrando-os com toda força que nossos braços puderem suportar. Ao envolvê-los nesse tormentoso e claustrofóbico enlace, pressioná-los pelo tempo que for necessário. A aposta é que, por conta dessa sufocante compressão, os seus disformes corpos inflem de tal maneira que a humanidade há de rebentar de dentro deles.

Roberto Amaral
é psicanalista e professor de filosofia da UFT