“Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada”, é o que determina a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, desde 1996. Para fortalecer esse direito, foi instituído o “Agosto Lilás”, mês de conscientização pelo fim da violência doméstica e familiar contra a mulher, a qual é disciplinada pela Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) que, neste mês, completa 15 anos de existência.

A Lei Maria da Penha objetiva proteger a mulher da violência doméstica e familiar, que é aquela que ocorre no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, em razão da condição de sexo feminino, e que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, além de dano moral ou patrimonial. Ressalte-se que a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada para a mulher transgênero, ainda que não tenha realizado a cirurgia de redesignação de sexo ou a alteração registral do nome.

Embora muito já se tenha discutido acerca da proteção especial conferida à mulher, a lei busca garantir a igualdade substantiva entre os gêneros, reconhecendo a desproporcionalidade física entre homens e mulheres, o histórico discriminatório contra a mulher nos diversos segmentos sociais, que vigora ainda hoje, e a relação de dominação/dependência, geralmente financeira e/ou emocional, que reduz a capacidade de autodeterminação da mulher, aumentando a sua vulnerabilidade num relacionamento abusivo.

A  violência atinge as mulheres de todas as classes sociais e se manifesta de forma cíclica, definida por três fases principais: 1) a fase da tensão, marcada pela instabilidade do relacionamento, quando começam os momentos de raiva, insultos, ameaças e a destruição de objetos pessoais e profissionais da mulher; 2) a fase da agressão, marcada por atos de violência, quando o agressor chega ao limite da tensão, perde o controle e explode violentamente; e 3) a fase do arrependimento ou da “lua de mel”, marcada pela reconciliação, quando o agressor demonstra arrependimento, promete mudar suas ações e se torna amável, mas, depois de um período de calmaria, a tensão volta e recomeçam as ofensas (físicas, psicológicas, morais e/ou patrimoniais). 

Diversas são as formas de violência, geralmente externadas através da humilhação, menosprezo, assédio, discriminação, perseguição, ameaça, manipulação, etc., sendo sua expressão máxima a morte. Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, são mortas cerca de 4.500 (quatro mil e quinhentas) mulheres por ano, sendo que 1/3 desses casos são tipificados como feminicídio, ou seja, morte em razão da condição de ser mulher. Embora no período da pandemia tenha-se observado a redução da quantidade de registros de ocorrências desse tipo de violência nas Delegacias, fruto do incentivo ao isolamento social e da dependência financeira, já que muitas mulheres perderam seus empregos, os números são bem maiores e continuam alarmantes. 

Ao longo dos seus 15 anos de existência, a Lei Maria da Penha vem se aperfeiçoando, afirmando a sua aplicabilidade e se robustecendo com novas medidas legislativas criadas para reforçar a proteção à mulher. O enfrentamento de todas as formas de violência contra a mulher, principalmente aquela que ocorre de forma oculta no ambiente doméstico e familiar, está embasado em três pilares fundamentais: 1º) denúncia, 2º) punição e 3º) reeducação do agressor. Em 2021, o ordenamento jurídico trouxe novas medidas de enfrentamento que fortalecerão os dois primeiros pilares e trarão avanços para alcançar a tão sonhada igualdade de gênero.

Romper o silêncio e denunciar é a primeira ação a ser adotada pela mulher para quebrar o ciclo da violência. Nesse sentido, a Lei 14.188, de 28 de julho de 2021, institucionalizou o “programa de cooperação Sinal Vermelho contra a violência doméstica”, possibilitando que a mulher expresse seu pedido de socorro por meio do código “sinal em formato de X”, preferencialmente feito na mão e na cor vermelha, em repartições públicas (Poder Executivo, Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e órgãos de segurança) e entidades privadas (farmácias, salões de beleza, restaurantes, igrejas, consultórios médicos, etc), que atuarão de forma integrada. Ao verificar esse sinal, os atendentes devem acionar, de forma discreta, a Polícia, por meio de um canal imediato de comunicação, a fim de que a mulher tenha a devida assistência e segurança. Para tanto, serão realizadas, em todo o País, campanha informativa e capacitação permanente dos profissionais pertencentes ao programa. O Conselho Nacional de Justiça foi precursor dessa campanha, em 2020, que agora virou texto de lei.

Lado outro, a punição exemplar do agressor visa dissuadi-lo da prática de crimes, desde os mais corriqueiros até o mais grave, de feminicídio. Sob esse viés, a Lei 14.132, de 31 de março de 2021, criou o “crime de stalking” (perseguição), no artigo 147-A do Código Penal (CP), definindo-o como a perseguição reiterada que ameaça a integridade física ou psicológica da vítima, quando restrinja sua capacidade de locomoção ou, por qualquer forma, invada ou perturbe sua liberdade ou privacidade. O stalking degrada as condições de vida e afeta a formação de vontade da vítima, atinge suas decisões e comportamentos, levando-a a mudar seus hábitos, horários, trajetos, número de telefone, e-mail, em razão do intenso controle e subjugação exercida pelo agressor. O crime, quando praticado contra a mulher por razão da condição de sexo feminino, é punido mais gravemente com o aumento da pena.

Ademais, a Lei 14.188/21 intensificou a punição dos agressores, na medida em que aumentou a pena para o crime de lesão corporal quando for praticado contra mulher, por razões da condição do sexo feminino (art. 129, §13, do CP), bem como criou o crime específico de “violência psicológica contra a mulher”, previsto no artigo 147-B do Código Penal. Tal crime é definido pela conduta de “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões” e pode ser praticado, exemplificativamente, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. Ademais, o risco à integridade psicológica, por si só, agora passou a ser causa suficiente para a imediata concessão de medidas protetivas de urgência (art. 12-C da Lei 11.340/06).

Conforme observaram Valéria Diez Scarance Fernandes, Thiago Pierobom de Ávila e Rogério Sanches Cunha: “A violência psicológica é uma forma de slow violence, uma violência cumulativa que gera, de forma silenciosa e invisível, uma progressiva redução da esfera de autodeterminação da mulher, com abalos emocionais significativos” (Disponível aqui): São formas de violência psicológica: fazer a mulher e as pessoas em volta acharem que ela é louca, destruir a sua autoconfiança (Gaslighting); levar o crédito por uma ideia que, na verdade, é da mulher (Bropriating); interromper a fala dela o tempo todo (Manterrupting); explicar o óbvio, como se ela fosse incapaz de entender (Mansplaining), dentre outras.  O resultado do crime é causar dano emocional à vítima, manifesto por crises de choro, ansiedade, angústia, flashbacks, insônia, distúrbios alimentares, dores crônicas, incapacidade de iniciar novos relacionamentos, redução da capacidade laborativa, etc. Tudo isso prescinde de prova pericial, já que não se confunde com dano psíquico decorrente de um quadro patológico.  

Outra importante ferramenta para reprimir a discriminação contra a mulher na esfera política foi a criação do “crime de violência política contra a mulher”, pela Lei 14.192, de 04 de agosto de 2021, definido no art. 326-B do Código Eleitoral como “Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.”. A nova lei ainda trouxe outras medidas para garantir o percentual mínimo de participação da mulher na política, assegurar o livre exercício de suas funções públicas e punir mais severamente a divulgação de fatos inverídicos, na propaganda eleitoral ou durante o período eleitoral, que envolvam menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia.

Por fim, embora muito se tenha avançado nos instrumentos normativos para o enfrentamento da violência contra a mulher, ainda se faz necessária a efetiva implementação de políticas públicas no sentido de promover a reeducação do agressor, a fim de evitar novos crimes ou a sua continuidade, mediante a estruturação e ampla disponibilização de programas de recuperação, de tratamento e acompanhamento psicossocial. Ademais, é necessário fortalecer a proteção da vítima, abrigando-as em casas de passagens e capacitando-as laborativamente, afirmando, assim, a sua liberdade para trabalhar, se manifestar, se autodeterminar e se relacionar com quem desejar, sem preconceito, sofrimento ou menosprezo pela sua condição de mulher, concretizando o seu direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada.