Roberto Amaral 
professor do Curso de Filosofia da UFT
 
No dia 17 de maio, perdi a minha tia Dadá para a COVID 19, em Rondônia. Depois de sentir-se mal, foi diagnosticada com pneumonia num hospital de Guajará-Mirim, cidade do interior, e foi transferida em estado grave para uma UTI na capital, Porto Velho. Submetida a exames, confirmou-se ser portadora do novo coronavírus. Em menos de uma semana, respirando por meio de aparelhos, ela definhou, e morreu.
 
O mais curioso é que, há pelos menos vinte e cinco dias desse lamentável desfecho, para minha surpresa, depois de anos que não consigo contar, ela havia me telefonado. Conversamos por quase uma hora. Estava muito bem, falou da vida, do trabalho, do esposo, dos filhos e das filhas, dos netos e das netas, das irmãs e dos irmãos. Fiz-lhe lembrar de fatos corriqueiros e engraçados que ela havia esquecido, e rimos juntos.
 
Ambos não sabíamos, mas era a nossa despedida. Uma das irmãs mais novas de minha mãe, após um enterro sem velório, contando apenas com a presença dos funcionários da funerária, dos coveiros e de uma sobrinha do, agora viúvo esposo, passaria a ser adicionada a funesta estatística de uma pandemia.
 
Não foi sem desconforto que, pelo WhatsApp, vi as fotos e assisti aos breves vídeos do enterro, enviados pela mencionada sobrinha, aos membros da família. Julguei, a princípio, que isso era desnecessário. Suficiente, a meu ver, seria guardar na memória as boas lembranças da tia Dadá. Porém, por alguma razão, a sobrinha deve ter pensado que, ao agir assim, levaria algum conformo aos familiares, ao testemunharem, a distância, aquela triste e solitária cerimônia.
 
Confesso que, até a morte da tia Dadá, eu estava completamente absorto e, por que não dizer a verdade, satisfeito, com o que ficou nomeado de “isolamento social”. Habituado a uma rotina produtiva férrea e a um ócio criativo inegociável, essa disponibilidade de tempo a meu favor, embora compulsória, veio a calhar. Minhas raras saídas se resumiam, e ainda se resumem, a idas semanais ao supermercado, a eventuais passagens por farmácias e a visitas regulares aos meus pais. Afora esses breves escapes, quando não estou lendo ou escrevendo, estou assistindo a filmes ou a séries.
 
Quase nunca vejo os noticiários da televisão. Vez em quando acesso pelo celular os jornais, zapeio as manchetes, leio algo dos suplementos de arte e cultura e, no entanto, por mais que eu não queira me inteirar dos fatos, de uma maneira ou de outra, em algum momento, no âmbito da cidade em que moro, do estado, do país e do mundo, me vejo frente aos relatos, às discussões e às reflexões sobre os acontecimentos relacionados a um terrível vírus, capaz de exterminar multidões em tempo recorde.
 
As versões, é claro, são as mais diversas e contraditórias, posto que é muito difícil pensar em tempo real sobre um evento com uma presença tão ostensiva em nossas vidas, como é o de se estar sob as circunstâncias e as consequências nefastas de um pandemia, cuja experiência, para muitos e para muitas, para a grande maioria, talvez, tenha sido apenas provada de forma indireta e abstrata, através de narrativas artísticas, como peças teatrais, obras literárias e cinematográficas, ou seja, com o distanciamento privilegiado de saber que os horrores que lemos e assistimos jamais nos alcançarão, a não ser pela desejável via da catarse.
 
A meu ver, é justamente a necessidade de se pensar em tempo real sobre essa tragédia que cai sobre todos/as nós, que tem feito com que qualquer tentativa de lhe dar um sentido, uma direção, um significado, uma resposta, caia na vala comum do equívoco. Não são poucos/as os/as oráculos/as vivos/as que têm tropeçado nessa armadilha, não vou nomeá-los/as, são muitos/as, e este texto tem que começar e terminar urgentemente.
 
Qual é o equívoco? Um desbotado Livro Sagrado sabiamente prescreve: “Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho romperá os odres; e tanto se perdem o vinho como os odres. Mas põe-se vinho novo em odres novos” (Marcos, 2:22). Em outras palavras, penso que a lógica de análise de todos os aspectos, sejam políticos, sociais, econômicos, culturais, estruturais, que foram trazidos à tona por força da pandemia e por seu enfrentamento, padece de uma cegueira momentânea totalmente compreensível, pois fomos todos/as golpeados/as na cabeça, à traição, e ainda estamos atordoados/as, confusos/as, tateando o desconhecido. Junte-se a isso a pressa em dizer o que a coisa é, essa coisa sobre a qual ainda se sabe tão pouco, quase nada. E mais, a impaciência de chegar à frente dos/as demais para esclarecer o que se pensa que se sabe. Mas, o que fazer? Somos humanos, queremos saber, somos movidos por esse desejo insaciável. O preço do equívoco é, inevitavelmente, termos de nos submeter ao que eu vou chamar aqui de “logos da repetição”: repetição de ideias, de abordagem, de métodos. Mais do Mesmo em direção ao Outro que não quer se mostrar tão facilmente a viciados exercícios de decifração.
 
A verdade incontestável é que a pandemia nos lançou a uma nova crise do pensamento. Algo semelhante ao que ocorreu durante a construção da Torre de Babel, quando Deus declarou: “Vamos descer e fazer com que a língua deles comece a diferenciar-se, de forma que uns não entendam os outros” (Gênesis, 11:7). De fato, o mal-entendido entre nós é muito antigo, tem a nossa idade, pois nasceu no mesmo dia em que nos demos por gente. 
Não seria o caso, então, de pensar o presente menos sob a “impaciência da afirmação”, o porto seguro do equívoco; e mais na “impostura da ambiguidade”, ou, como quer Milan Kundera: na “sabedoria da incerteza”?
 
O discurso da ciência, a despeito dos defensores fanáticos do negacionismo, tem dado, quase sempre, a última palavra sobre o modo de como devemos pensar e agir, a partir de inúmeros relatórios de pesquisa. Mas tenho ouvido muito pouco, ou quase nada, sobre o mundo da vida, principalmente do mundo da vida do vulgo, do inominado, transformado em mero percentual estatístico, como foi o caso da tia Dadá, que só tem um nome porque eu insisto em repeti-lo. A face do humano ordinário que já era comum, irrelevante, está agora totalmente velada pela máscara que é obrigado a usar. O vírus invisível e seus sequazes visíveis também invisibilizam o vulgo, escondendo-o por trás de uma máscara, isolando-o em sua moradia e, em última instância, exterminando-o da face da Terra.
 
A minha aposta é que a literatura seja, nesta hora absurda, a manifestação mais potente do que chamei ali atrás de “impostura da ambiguidade” e que Kundera nomeou de “sabedoria da incerteza”, para pensar o presente e resgatar esse ser que tem sido lembrado de diversas formas: como experimento, como conceito, como massa, como paciente, como corpo inerte, como dado estatístico; mas esquecido na condição do que ele/a fundamentalmente é: humano.
 
Sei disso por experiência própria. Tenho lido e tenho escrito textos literários no meu “isolamento social”. Além de ter encontrado consolo, tenho abastecido as minhas reservas de esperança e, surpreendentemente, também me vejo acompanhado de muitas pessoas, os “egos imaginários”, de que nos fala Kundera, os/as  personagens da estórias, esses/as nossos/as irmãos de palavra e papel que nos exortam, sem ousarem ser mestre de ninguém, a perguntar quem somos e a que viemos.