Elizangela da Rocha Fernandes
Mestra em Letras: Ensino de Língua e Literatura pela UFT, professora de Língua Portuguesa da Secretaria de Estado de Educação, integrante do GEDIFI (Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais e Interdisciplinaridade).
 
No dia 26 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde brasileiro confirma o primeiro caso de Covid-19 em São Paulo. Em 17 de março, ocorre a primeira morte pelo novo vírus no país, e se totalizam 291 casos confirmados e 8.819 sob suspeitas. Daí por diante os números não param de crescer no Tocantins, no Mato Grosso e em outras localidades nacionais, o que exigiu mudanças drásticas em todas as esferas de atuação humana, dentre as quais mencionamos a de trabalho, a de consumo, a de lazer e a de educação. Muitos questionamentos podem ser levantados e debatidos sobre quaisquer dessas e outras não mencionadas, discute-se neste o ensino e a aprendizagem. 
Um vasto número de decretos são deliberados em prol da erradicação do número de infectados e mortes nos estados e municípios, alguns mais rígidos e outros mais flexíveis, dependendo da visão sócio-politica-econômica de cada governante; entre as esferas mais afetadas está a da educação, mais precisamente, no que concerne ao ensino e a aprendizagem dos estudantes das escolas públicas. As secretarias educacionais com o intuito de sanar a impossibilidade de um ensino presencial, devido à pandemia, resolveram apostar no uso das tecnologias digitais, dentre outros recursos, para não deixar a ‘educação’ dizimada, proposta que depende intrinsicamente de outra esfera, a de consumo. Para Santos e Santiago (2018, p. 132) o consumo “tornou-se especialmente importante, se não central, para a vida da maioria das pessoas” e para alguns “o verdadeiro propósito da existência”, em maior ou menor grau todos consomem e tudo é consumível. Nessa perspectiva, a educação é um meio de consumo de ricos e de pobres, uma mercadoria que tem o seu valor e o seu preço.
 
O acesso às aulas propiciadas pelo intermédio dos recursos tecnológicos nos meios digitais depende de consumo, sobretudo da Internet, cujo consumo, nos últimos anos, assim como o dos recursos tecnológicos, expandiu-se, contudo há muitos educandos que não possuem televisão, celular e muito menos computador. A realidade social, econômica e cultural dos educandos brasileiros é desigual, mesmo que haja a opção de apostilas para os que não podem assistir às aulas virtuais, essa opção é eminentemente destoante, uma aula presencial com os atores aprendizes e mestres envolvidos é diferente de uma aula virtual, na qual os alunos são apenas ouvintes, imaginem um aluno ler uma apostila sozinho, sem explicação. Alguns discentes podem ainda não ter acesso a nenhuma dessas opções, pelo mesmo motivo das situações anteriores (poder de consumo/aquisição de bem, nesse caso bem móvel – veículo), muitos discentes que moram na zona rural e estudam na zona urbana não possuem meio de locomoção para ir à escola, os quais, nos dias letivos, dependem de um ônibus para estarem nas instituições de ensino.
 
Há de se considerar que os organizadores desse “aprendizado” estejam se esforçando ao máximo, reconheço a excepcionalidade inesperada da situação atual e a atuação da maioria dos governantes em procurar satisfazer as necessidades educativas dos discentes, o controverso é que essa nova forma de educação não beneficiará todos os educandos por fatores diversos, dentre os quais, o poder aquisitivo.
 
O Artigo 206 da Constituição Federal de 1988, que versa sobre a administração do ensino, tem dentre os seus oito princípios, a gestão democrática do ensino público e a garantia de padrão de qualidade, esses ainda estão muito distantes do alcance de ‘todos’, ao compararmos essa “educação virtual” a ser oferecida no período pandêmico pelas duas vertentes de ensino: o público e o privado, a desigualdade é, ainda, mais exorbitante do que entre os pares que estudam no setor público.  
 
Aos discentes da educação pública são oferecidos vídeos por canais de TV e/ou sites, apostilas impressas ou digitais e, alguns estados disponibilizaram plataformas de aprendizagem. Os educandos respondem a questionários, os quais, em sua maioria, não possuem ou possuíram retorno/visualização por parte dos professores, há plataformas que informam o quantitativo de erros e acertos, bem como a assertiva correta. Nesses moldes há um ínfimo aprendizado por falta da interação professor-aluno, professor-alunos, alunos-alunos.
 
Os educandos do setor privado possuem acesso a plataformas digitais, por intermédio delas, os discentes possuem acesso a conteúdos e exercícios, assistem a aulas ao vivo dos professores de cada área de ensino, em horários predeterminados, com os quais os educandos podem interagir, perguntar e responder, algumas das atividades propostas são corrigidas pelos educadores no transcorrer das aulas ministradas. Nesse, há a interação por parte de todos os atores envolvidos no processo, portanto um ensino mais efetivo, propiciado pela “oferta” e pelo poder de “ter" acesso. Segundo Santos e Santiago (2018, p. 132) “as perspectivas simbólicas “do ter” e a diferenciação social dos indivíduos em meio à sociedade vem de encontro ao ideal de que o sistema econômico é”, ainda conforme os autores, os processos naturalizantes em meio à sociedade de mercado movimentam o fetiche da mercadoria, não permitindo que possa haver uma reflexão alargada e consciente dos impactos negativos causados para o indivíduo, nas esferas do particular e do social.
 
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1888). O Artigo 205 sugere a cooperação da tríplice – Estado, família e sociedade para a oferta de uma educação de qualidade. Se quisermos, que o direito à educação seja garantido a “todos”, precisamos continuar lutando, uma das principais causas da luta está na promoção da conscientização do Estado, da família, da sociedade e, principalmente do aluno, enquanto sujeito de direito, esse deve querer, de fato, usufruir, consumir com maestria e entusiasmo seus direitos. 
 
Para além da conscientização faz-se necessário a providência de ações para uma efetiva mudança socioeconômica e cultural no Brasil. Urgem-se também transformações no sistema educativo de ensino, posto que o ensinar e o aprender transcende a obtenção de conteúdos e a principal função da educação deveria ser a formação de cidadãos conscientes e agentes. 
A conscientização, como bem conclamou Freire (1980) “não consiste em estar frente à realidade assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação – reflexão”. A conscientização é “compromisso histórico”, é “inserção crítica na história” e implica que os homens “assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo”. O ensino deve ser excelente e útil para todos, em prol da efetivação dessa afirmativa cumpram cada um o seu papel, como entes da nação brasileira sejam agentes enquanto pai, mãe, professor, discente, legislador, prefeito, governador e presidente. 
 
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Referências:
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 mai. 2020.
 
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Trad. Kátia de Mello e Silva. 3. ed. (1ª edición: 1967). São Paulo: Morais, 1980.
 
SANTOS, Éverton Neves dos Santos; SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O consumo colaborativo no uso das moedas sociais pelos bancos comunitários de desenvolvimento: possibilidades contrahegemônicas. Revista de Direito do Consumidor. Vol 118. ano 27. p. 127-149. São Paulo: Ed.RT, jul-ago.2018.