Salatiel Soares Correia
é Engenheiro, Bacharel em Administração de Empresas, mestre em Ciências
pela Unicamp. É autor, entre outras obras, de Cheiro de Biblioteca.
 
A carteirada dada pelo desembargador do estado de São Paulo, Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, a um guarda da Polícia Municipal de Santos, que “ousou” multar o transgressor porque estava sem máscara merece algumas reflexões.
 
Quem muito investigou, cientificamente, esse assunto foi o sociólogo Roberto da Matta, na sua obra-prima "Carnavais, Malandros e Heróis". Nesta, o autor analisa o famoso “você sabe com quem está falando?” como algo que se atrela à gente letrada — políticos, juízes, policiais, artistas, jornalistas, enfim —, pessoas estudadas que, do alto de seus cargos (ir)relevantes, sentem-se acima da lei.
 
Quem não se lembra da atitude do juiz João Carlos de Souza quando a guarda de trânsito Luciana multou sua excelência por estar dirigindo sem habilitação. Irritado, o magistrado, abusivamente, deu voz de prisão a uma servidora do Estado que cometeu o grave pecado de cumprir com sua obrigação. Não satisfeito, conseguiu o infrator reverter o papel de acusado para acusador. E, assim, a justiça condenou a humilde Luciana a ressarcir sua majestade — ops! excelência — a quantia de 5.000 reais. Mas Luciana não ficou desamparada. O fato veio a público, e a população resolveu fazer uma vaquinha, que arrecadou cerca de 13.000 reais. A correta Luciana pagou a multa e destinou o restante para uma casa de caridade.
 
Posto isso, voltemos à carteirada do desembargador Eduardo Almeida Prado que, com o caso vindo a público, está em maus lençóis não só por esse ato em si, mas pelo seu passado de agressões meticulosamente levantado pela mídia. O influente site Antagonista divulgou declarações de funcionários e até de juízes confirmando a condenável postura do senhor Eduardo Almeida Prado, que se diz magistrado.
 
Segundo o Antagonista, a desembargadora Lúcia Pizzotti relata que, por duas ocasiões, fez representações contra o senhor carteirada. A primeira delas foi quando sentiu sua honra ofendida com declarações do desembargador contra a efetivação da magistrada ainda na primeira instância. A segunda representação se materializou quando Eduardo Almeida Prado gritou com ela em uma das garagens do Tribunal de Justiça de São Paulo.
 
“O Tribunal de Justiça de São Paulo não compactua com atitudes de desrespeito às leis, regramentos administrativos ou de ofensas às pessoas”, assim se pronunciou serenamente a instituição. No Superior Tribunal de Justiça, o corregedor Nacional de Justiça — ministro Humberto Martins — mandou intimar o desembargador para que, no prazo de 15 dias, “preste informações a respeito dos fatos expostos”. Parece que o magistrado está em maus lençóis. O “você sabe com quem está falando?” não condiz com os olhos grandes das câmeras de celulares e seu infinito poder de divulgar instantaneamente imagens. Se sua excelência, em vez de humilhar o guarda falando um francês macarrônico, tivesse lido "1984", a obra-prima do genial escritor inglês George Orwell, saberia o que é viver em um mundo onde os olhos vigilantes do “Grande Irmão” (o Estado e, no caso dele, a imprensa) estão por todo o lado registrando e, principalmente, divulgando o nosso profundo eu subterrâneo.