O jornal Folha de S.Paulo publicou nesta sexta-feira (29), a coluna da atriz Fernanda Torres, intitulada "Romanos", onde ela faz uma menção a sua estadia por Goiânia, durante a turnê da peça "A Casa Dos Budas Ditosos". A atriz conta que foi até a sauna do hotel onde estava hospedada e em uma placa leu que "era proibido bater o Prestobarba na madeira. O ambiente era para macho".

No local, estavam mais cinco senhores, que deixaram a sauna após a entrada da artista. Restou apenas um, que segundo ela, "lembrava muito o deputado federal Heráclito Fortes" e ao final da conversa ficaram "íntimos".

A atriz conta que esse senhor tinha medo do filho ser "'bicha' –palavras dele –e só relaxou no dia em que o guri arrumou uma namorada fixa" já que tinha um caso desse em sua família.

Fernanda fez um paralelo dessa história com a votação do impeachment na Câmara, onde também citou o deputado goiano Delegado Waldir, "que votou simulando uma arma apontada na mão". "A votação do impeachment na Câmara provou que eu estava enganada, o goiano ainda é regra. A constatação gerou-me um misto de horror e alívio" disse a atriz.

Por fim, a colunista conclui seu pensamento sobre os últimos acontecimentos políticos. "Veio à tona o que sempre esteve ali: a homofobia, a misoginia, a bancada da bala e da família quadrangular; o reino do meu companheiro de vapores goiano. Cabe aos sobreviventes reorganizar as trincheiras e escolher melhor os aliados. Chama o Cristovam Buarque. Está aberta a temporada de cuspe no Planalto Central".

Leia abaixo o artigo de Fernanda Torres.


Romanos

Há anos, numa turnê com "A Casa Dos Budas Ditosos", desci para tomar uma sauna no hotel de Goiânia.

Cinco senhores envoltos em toalhas brancas dividiam o cubículo escaldante. Na parede, uma placa avisava que era proibido bater o Prestobarba na madeira. O ambiente era para macho.

Fingindo normalidade, me sentei entre os romanos.

Afetados com a minha presença, os convivas abandonaram o barco mal brotado o suor e eu sobrei sozinha, com um patrício graúdo que lembrava muito o deputado federal Heráclito Fortes.

Vencido o constrangimento, acabamos íntimos.

Soturno, "Heráclito" confessou que passou 18 anos atormentado com a possibilidade de o filho ser "bicha" –palavras dele –e só relaxou no dia em que o guri arrumou uma namorada fixa.

Intrigada, perguntei se existia algum caso na família que justificasse tão longo sofrimento. De olhos baixos, ele acenou com um sim. "No seu lado dos parentes, ou no de sua mulher?", arrisquei indagar. "No meu", sentenciou consternado. E nada mais foi dito.

Certa dos recentes avanços morais e cívicos da nação, sacramentados pela aceitação inconteste da baiana libertina de João Ubaldo entre as plateias mais díspares, senti pena daquele exemplar em extinção do velho coronel patriarcal.

A votação do impeachment na Câmara provou que eu estava enganada, o goiano ainda é regra. A constatação gerou-me um misto de horror e alívio.

Passei os últimos dez anos culpada por fazer parte da elite espúria. Hoje, sei que sou minoria. Do circo dominical, ressalto as vozes de Alessandro Molon, Chico Alencar e Jean Wyllys, embora preferisse a sua abstenção no voto.

Fora o delírio do pré-sal, que alavancou o ganância do Petrolão, a campanha eleitoral de 2014 se valeu de artimanhas arcaicas, vindas de um partido que jurou dar cabo desse modelo.

Jamais esqueci da promessa do Bolsa Mobília, feita no rádio pela então candidata, de distribuir cama, mesa e sofá em troca de votos. Houve maquiagem no rombo das contas públicas e gastou-se os tubos em computação para fazer o feijão sumir do prato.

Que diferença existe entre isso e a troca do voto por um saco de açúcar, praticada nos eternos currais eleitorais?

Se o Heráclito da sauna fosse político e se valesse de tais artifícios, eu não me espantaria; ou o deputado Givaldo Carimbão, de Alagoas; ou o Delegado Waldir, deputado pela mesma Goiânia, que votou simulando uma arma apontada na mão.

Chocante é perceber que os dois partidos progressistas, PT e PSDB, tal qual Caim e Abel, preferiram cultivar o ódio mútuo, firmando acordos escusos com o que havia de mais retrógrado no Congresso, a se aliar, ou mesmo dialogar em prol do país.

Cansado da coadjuvação, o velho clero chutou para corner o verniz social modernizante da USP, da Unicamp e do ABC.

Via-se, no sorriso de Fouché do arquivilão Cunha, o prazer de ensinar como se faz política na ex-colônia extrativista.

Agora é às claras.

Veio à tona o que sempre esteve ali: a homofobia, a misoginia, a bancada da bala e da família quadrangular; o reino do meu companheiro de vapores goiano. Cabe aos sobreviventes reorganizar as trincheiras e escolher melhor os aliados.

Chama o Cristovam Buarque.

Está aberta a temporada de cuspe no Planalto Central.