Sim, de simples bouganvilles pode-se tocar algum ponto sensível do organismo social, na sonhada equalização humana em seus anseios mais ancestrais de igualdade. Não é coisa exagerada, se exagero for entendido como utopia, inatingível; ou pode até ser, bem admitimos pensando melhor, mas quem sabe somente para aqueles morgados ante as imponências da sociedade, desacorçoados em crer na possibilidade de igualdade, mesmo que elas partam de simples acesso a plantas.

De toda sorte, aqui não se tentará o convencimento, mas sim estender um ponto minúsculo, delicado, de nossas condições de relações, nosso lugar no mundo, da rua em que a gente mora ao continente. Ah, pode até também ser considerado coisa boba, mas, para este escritor, um fato e tanto, urgente, neste tempo, de relato e reflexão.

Por aqui e pela minha memória, as primaveras estão entre as imagens quase sacras. Lá estão elas nas distâncias da memória, um pouco enuviadas, sobre os muros das casas de pessoas conhecidas de Itauçu, cidade onde orgulhosamente nasci, cresci e moro. Saltando para fora, imponentes, vigorosas, as belas plantas, com seus coloridos diversos, ornaram minhas passagens ainda menino para o centro da cidade, indo e voltando do colégio ou mesmo, na maioria das vezes, perambulando à toa com os amiguinhos, procurando o que não perdeu.  

Tinha primavera na casa do doutor Siro Drummond e doutora Branca, na casa da doutora Vani, na casa do empresário Nelson Saddi, além de alguns outros. Alguns. Afinal, não eram tanto os que tinham ou podiam ter primaveras sobre seus muros ou grades; primeiro que ter diante de casa uma sólida barreira consistia então em privilégio, quase uma estrutura de pompa. Na imensa casa dos Saddi, a planta era amarrada na grade da frente, onde, cuidadosamente podada, tinha e, salvo engano, até hoje tem, forma quadrada. Na casa na doutora Vani, diferente, cresciam soltos, quase sem poda, ao sabor de suas vontades naturais, enfeitando de cores a esquina da avenida Ezequiel Lino com a Maceió.

Tais lembranças minhas se mantinham agachadas, mas prontas para um salto. Pôs-se de pé quando, agorinha há pouco, começou o projeto Arvoradas na unidade prisional em que trabalho. Dentre tantas espécies cultivadas exclusivamente para doação, a primavera se destaca por causa destas lembranças. A cada doação da espécie, em que a Polícia Penal entrega a muda já crescida e no ponto de ir para o chão ou para algum vaso, no sorriso de quem recebe é notória a profunda satisfação não apenas de receber a planta, mas de saber o quanto a espécie representa culturalmente e, por que não?, socialmente. Quando posso, eu mesmo faço questão de trocar algumas palavras com essas pessoas, falando de como cultivar, onde na nossa cidade se tem, questão de rega e sol. Outro dia, falei até de Burle Max e sua contribuição para difusão da primavera.

Estando à frente de tão voluntariosa e nobre iniciativa, que mira a ajudar na arborização e preservação ambiental, vejo, talvez apenas eu e quem sabe não fique sozinho nessa, traços de justiça social. Porque qualquer pessoa, sem distinção, pode ter em sua casa, enfeitando os muros e jardins, pelo menos um exemplar de primavera. E que, assim sendo, também ao passarmos pelas ruas estreitas, por vezes esquecidas e negligenciadas, afastadas do centro, a rua da Joana, da Maria ou do Tonho, possamos ver sobre os muros e calçadas as belas plantas brasileiras e oportunamente domesticadas resplandecendo.

Nisso, ainda futurando eu otimista, mais, acaso alguma criança passe por uma dessas ruas, guardará o instante em sua lembrança e mais tarde escreva outra crônica a respeito. Antes de encerrar, uma mera sugestão de título: Sinais de igualdade: em todas as casas, primaveras. 

Ito Pedragrande
nome artístico de Hailton Correa Lima, é policial penal e escritor. Licenciado em Letras pela Universidade Estadual de Goiás, atualmente possui quatro livros publicados: Aluir a palha, ruir a pilha; Senda Incomum; A rosa anilada e outros contos; e O revés da vingança. Contato: hailtoncorrea@hotmail.com