Aurielly Painkow
jornalista cristalandense radicada em Palmas, mestranda PPGCom/UFT
 
“O mundo é sortido de tudo.” Esse é um dizer comum dos mais velhos interioranos para explicar as diferenças humanas, como em minha cidade natal, Cristalândia, uma cidade com uma comunidade tradicional religiosa, no sudoeste do Tocantins, a 138 quilômetros de Palmas.
 
Como em toda cidade pequena – 7,2 mil habitantes -, também temos uma pessoa inusitada. E a da cidade dos cristais é um inusitado santo. Maltrapilho e pedinte a vida toda, mas admirado por todos. Talvez porque ele seja o simples em pessoa, alguém que integra a natureza e não age como se fosse superior a ela, mas que admira flores, ama os pássaros, cultiva árvores, granjeia folhas e aprecia o céu.
 
Um ser que se apresentou evoluído em todos os seus 70 ou 80 anos. Ninguém nunca soube sua idade.  Nem seu nome. Sua origem. Sua história. Um homem sem palavras. Não porque seja mudo, mas uma opção ao sigilo, impenetrável em suas razões para todas nós. 
 
Exceto por raros testemunhos que ouviram de sua boca palavras como “céu” e “flor”, seu silêncio é sua fala ao longo desses anos em que não precisou de documentos, de títulos ou cartões bancários para ser mais ilustre que muitos cristalandenses, mesmo sendo um anônimo. 
 
Os pés descalços e o corpo coberto por roupas rasgadas jamais impediram um sorriso fácil, doce, ingênuo e cativante, em todos os dias a percorrer seu itinerário de sobrevivência, do amanhecer ao turvo da noite. 
 
Casas que ele aborda para o café da manhã não são visitadas para o almoço e nem para a janta. A família que recebe essa estada sente-se privilegiada. Ninguém nunca soube por quais critérios de escolha ele define onde comer. Se pelo sabor da comida, pela disposição e receptividade da família, ou pela geografia da rua, do lugar, nunca se soube. 
 
Sua chegada é marcada pela discrição e por um código. Padrão. De mansinho, muitas vezes teatral. Com pedras pequenas tira sons das janelas ou portões, sem agressão. Ritmados. Para se fazer notar e ganhar o de comer. Sua gratidão era o sorriso. Vez em quando, o escambo com uma flor ou uma folha seca. 
 
Se é voto de pobreza por alguma razão em seu passado, ele não verbaliza. Não é surdo nem mudo. Talvez o autismo o tenha colhido na juventude e ele aprendera a lidar com seu ensimesmamento ao logo da vida. Os mais antigos moradores que o conhecem, acreditam ser por opção, um voto de silêncio ou uma promessa. 
 
Seu estado de espírito está no corpo, nos movimentos, dos olhos, dos braços e pernas. Num teatro corporal ou quem sabe numa dança para a natureza que ele se comunica. Apanha flores ou folhas e no malabarismo solitário, com as pontas dos dedos saúda o céu, ao vento, ao sol. 
 
Sua pantomima, quase sempre ao final de cada refeição, busca, talvez, seduzir os olhos sempre curiosos de quem se porta diante de ser tão puro. É o que parece ser sua arte/atitude, de sorriso a postos e aquela flor ou folha da cena teatral é dada ao anfitrião que recebe o mimo, mas nunca o prato, sempre deixado no chão onde fez a refeição. 
 
Não é de toque. Nem de abraço. Nem carinho. O banho nunca é voluntário. Só quando já está malcheiroso os homens do grupo de oração o levam para um córrego próximo, o Campeira. Os irmãos de fé colocam em prática as passagens bíblicas, inspirados no relato de João 13:1-17: (...) “depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha (...) Se eu, pois, sendo Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros; porque vos dei exemplo, a fim de que, como eu fiz, assim façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes”. 
 
Na cidade dos cristais, é um personagem bíblico real do local.  Saltitante como uma criança grande, suas roupas rasgadas lembram os personagens bíblicos pobres que iam ao encontro de Jesus. Na minha cidade é quem mais se assemelha ao filho de Deus. 
 
A começar pelas suas noites de descanso, sempre na casa de Deus na terra, a igreja. A matriz nossa Senhora do Perpétuo Socorro é seu abrigo há mais de quatro décadas, pelo menos.  
 
Izuis, ou Izus e Zuis, também assim pronunciados, são os nomes desse homem simples, que parece imitar Jesus. Seu nome foi uma aclamação popular, porque ninguém jamais soube seu nome verdadeiro. Ninguém nunca procurou saber. O homem maltrapilho e pedinte será sempre chamado e lembrado pelo nome de Izuis, e ponto. 
 
Izuis é um presente para a comunidade que se fez cidade e teceu sua história ao lapidar cristais nas rochas. 
 
Para mim, Izuis é o cristal mais raro que Cristalândia lapidou e será guardado como modelo humano em meu coração e, acredito, no coração de muitos cristalandenses.
 
Porque ele se foi neste domingo, 19 de julho de 2020, de serenidade e velhice, no abrigo de idosos que o acolhe há dez anos, desde que ele sofreu uma pneumonia após uma vida ao relento.
 
De tão amado, Izuis ganhou um plano funerário e será enterrado de forma nobre, como gente digna e não indigente.
 
Não é difícil imaginar sua morte como um momento em que Deus o recebeu, nesse domingo, um dia de sol e verão, com muito canto de pássaros. Um dia de vento. Ventania que espalha folhas e flores que irão cobrir para sempre esse cristal lapidado por Deus.