Horinha de Deus foi o nome que lhe demos tão logo chegou à nossa cidade por volta do ano de 1983. Veio da estrada. Era desses que saem pela vida sem destino certo, estabelecendo-se onde afeto e carinho encontrar. Lá se radicou por força dos sorrisos recebidos nas ações espontâneas e características do nosso povo quando se trata de acolhida.

Por Horinha de Deus foi apelidado porque respondia prontamente a cada cumprimento que recebia, com o dedo polegar em riste, exprimindo freneticamente: na horinha de Deus. O cumprimentávamos acenando com um joia só para ouvirmos a imediata frase: na horinha de Deus. O dedo polegar levantado simultaneamente à resposta, no que ríamos de nos perder em graça.

Mas Horinha de Deus nos era desconhecido. Estava ali todos os dias no nosso meio, rodeado ou rodeando as reuniões típicas e comuns do interior, fazendo suas graças e em harmonia e graça com todos. Não sabíamos de onde surgira. Vivíamos ainda o romantismo da inocência interiorana que acolhe a todos e qualquer, sem amiudar a origem.

Quando e como se deu, caro leitor, o trágico encontro de Horinha de Deus com uma família tradicional da zona rural da cidade é o que veremos a seguir.

Numa manhã de sol escaldante, Dona Dita, de bicicleta, trazendo à garupa o filho menor, deixa o sítio onde moravam com destino à cidade. Na bagagem, queijos frescos para venda no comércio. À tarde e de posse de alguns víveres, retornam ao sítio. Era imperioso o retorno neste mesmo sol, pois, seu Zico, o marido, ficara só e a cargo das muitas tarefas.

Não sabia Dita que seu retorno era vigiado. Era Horinha de Deus quem os espreitava. O sol dava mostras de abrandar o seu fulgor, trazendo as primeiras sombras ao caminho, enquanto sombras outras e maléficas rodeavam as pedaladas de Dita.

Era já em penumbra quando Horinha de Deus os alcança e sabe-se lá por qual motivo, os ataca, jogando-os ao chão e, em cima de Dita, tentava desvesti-la de suas roupas, em feroz luta corporal. Mas Dita resistia com a força de uma leoa defendendo a cria.

Açoitado longe, o pequeno que estava na garupa sai em vertiginosa carreira rumo ao sítio ao encontro do pai. Era uma distância considerável para tão pequeno ser, mas vencida em instantes pela força do salvamento que precisava ocorrer. O pequeno chegou ofegante e seu Zico entendeu no olhar desesperado do filho que Dita estava pelo caminho e corria perigo.

Lançou mão da espingarda que descansava pendurada e saiu a passos largos, seguindo a corrida incansável do pequeno guia. Alcançou o local da contenda onde Dita ainda resistia em luta bravia com aquele que ousava, pela força e covardia, manchar sua moral e sua verdade de mulher honrada.

Seu Zico aperta o passo e ao ter percebida sua chegada, grita seus alertas para que o agressor a deixe. Este, porém, levanta-se rapidamente e empunhando uma faca, parte para cima de seu Zico, vociferando em brados agressivos e incompreensíveis. A Seu Zico não resta alternativa. O tiro parte e alcança Horinha de Deus bem debaixo do braço, que cambaleia e tomba ao chão, de bruços, já sem vida. Fora alvejado em lugar mortal.

As autoridades são chamadas e Seu Zico presta esclarecimentos; sente-se criminoso. Foi em legítima defesa da honra. Redime-se consigo e almeja pelo perdão.

Horinha de Deus vai ao sepulcro ali mesmo na cidade; seus restos mortais não foram reclamados. Era sozinho, não se sabe de parente. – Deus cuidará! Ainda ouço o ressoar das vozes de muitos aos meus ouvidos.

Dita está salva, o pequeno também, mas o desfecho é triste e trágico. A família está intacta, mas são profundos os arranhões e as marcas no corpo e na alma.