Brincar e ser uma criança como outra qualquer não fez parte da vida de Maria (nome fictício). A menina sofria violência doméstica de quem mais deveria protegê-la e amá-la: sua própria mãe. Ainda com cinco anos, isso na década de 1970, começou a trabalhar para levar o sustento para casa. A rotina começava cedo, logo às 5 horas da manhã, a inocente criança já pulava da rede para começar mais um dia de vendas de bolos e cuscuz.

No interior do Maranhão, em uma pequena cidade que ela prefere não divulgar para não sofrer represália da família, começa a história dessa mulher forte que não se deixou abater pelas tristezas da vida.

O ponto certo para as vendas era em um quartel da Polícia Militar. “Eles compravam sempre que possível, pois sabiam que eu apanharia se voltasse para casa sem o dinheiro”, relata ao explicar que também era obrigada a ir com fome e não tinha o direito a comer. “Quando a fome apertava eu jogava um pedaço de cuscuz no chão e falava para a minha mãe que ele tinha caído. Então a mentira não era de toda errada. Mas me doía muito não ter direito a comer”, relata emocionada.

Outra situação recordada por ela e que ao retornar para casa com sobra da manhã, a mãe jogava no lixo, mas não deixava ela e os irmãos comerem. “Era uma forma de nos castigar”, explica.

O dia seguia com mais vendas ou ia ao mercado comprar ingredientes para o outro dia.  “Eu gostava muito de estudar, mas era privada desse direito. Quando conseguir ir para a escola era com roupas velhas e bolsa feita de sacola. Nessa época o governo não ligava tanto para a gente. Criança não tinha direito”, detalha a mulher.

Além da violência sofrida em casa pela mãe, com inúmeras surras, às vezes por coisas banais, Maria quase entrou para a estatística das crianças vítimas de estupro. “Um senhor que sempre comprava de mim e dava balas e doces. Um dia me jogou para dentro do quarto. Apesar de pequena eu já sabia das coisas. Consegui correr e pedir ajuda no quartel. Não lembro se ele chegou a ser punido, acredito que não tenha sido, pois era homem influente na cidade”, declara Maria.

Na tentativa de fugir das agressões, casou logo cedo aos 14 anos com um rapaz de 17 anos, que continua sendo seu marido. “Meus pais continuaram exercendo influência, pois morava com eles. Era obrigada a aceitar que meu marido passasse a noite em festas, pois o discurso dos meus pais era o mesmo: lugar de mulher é dentro de casa e homem na rua. Cresci nesse meio, oprimida e achando tudo normal”, lembra Maria ao relatar que engravidou do primeiro filho aos 15 anos.

Mesmo casada, a menina brincava de casinha com latas velhas que encontrava no lixo. “Aquilo era meu universo. Mesmo tão jovem já tinha que trabalhar fora o dia todo e ainda cuidar da casa. Fui ensinada a servir meu marido. Entregar o prato dele feito e tudo que ele pedia. Não era nada fácil, mas não entendia bem o que acontecia”.

O ciclo de violência seguiu por anos e ela sempre se questionou sobre o comportamento de sua mãe. “Até hoje não entendo o motivo de ela ser assim. Mas acredito que seja pelo fato de apanhar do meu pai alcoólatra e sofrer tentativas de homicídio. A raiva dela e a frustração pelas traições do meu pai eram passadas para os filhos. Ela não entende seu papel de vítima e agressora nisso tudo”, explica a mulher.

Hoje com 42 anos e três filhos, ela segue com o casamento, mesmo sofrendo violência verbal e psicológica. Questionada o motivo de não colocar um fim no relacionamento e ser protagonista da própria história, a mulher diz estar acostumada e não enxerga uma mudança. “As coisas já estão assim e acho que não irão mudar. Sigo trabalhando duro o dia e a noite para dar o meu melhor para meus filhos, apesar de não ser reconhecida pela família”. Maria realizou neste ano um sonho de infância, aos 42 anos de idade conseguiu a primeira bicicleta em sua vida. “As pequenas conquistas devem ser sempre celebradas”, finaliza.

A psicóloga especialista em saúde da família, Dhieine Caminski, explica que a educação das crianças quando é punitiva, tem um peso grande na vida adulta. “A educação punitiva, física e psicológica fazem a criança se sentir menosprezada e coagida. Nisso ela passa a aceitar certos comportamentos no futuro”, conclui.

Dhieine chama a atenção para um fato imprescindível e que afeta diretamente a vida dessas mulheres, não basta informação, é preciso que a informação dessa pessoa seja pautada na educação emancipatória. “A informação em si pode levar à angústia. É preciso fornecer subsídio para que a vítima saiba como sair do conflito.”

Para a especialista, a questão cultural é o principal entrave. “A sociedade aceita que o homem ganhe mais, que seja o chefe da casa. Muitas pacientes que atendo demoraram anos para desvencilhar e entender que o dinheiro que ganham é delas, e que não precisam entregar no final do mês todo o salário para os companheiros administrarem.”

As relações homoafetivas entre lésbicas e bissexuais também escondem casos de violência. “Existe uma repetição de padrão em que as agressoras reproduzem os padrões de dominação vividos na infância”, esclarece.

Outro entrave é que poucas vítimas vindas de relacionamentos homoafetivos aceitam e entendem que o que estão passando. “Não procuram ajuda devido ao estereótipo de que apenas o homem é o opressor. A cultura do patriarcado também cria mulheres agressoras”, conclui.