E a tragédia do estado atual das coisas

A circulação de pedestres e veículos nas cidades é essencial para a vida das pessoas nas mais diversas dimensões – pessoal, social e econômica, e vai além, representa também uma parte importante de valores humanos maiores, a liberdade e a democracia. Mas o trânsito, que deveria ser um espaço sadio da vida brasileira em comum, tornou-se uma praça de guerra, um gigantesco abatedouro, com um absurdo (e desnecessário) custo de vidas, saúde e recursos das pessoas e dos governos. Na origem desta tragédia, expressão significativa do nosso atraso, não estão apenas a ineficácia gritante e autoindulgente de gestores e políticas, mas, em especial, a falta de coesão social, de cidadania, de bons valores a nortear os brasileiros. Cabe a nós todos criarmos vergonha e mudar, evoluir, construindo um ambiente sadio na mobilidade urbana, com cuidado, gentileza e respeito, baseado na relação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, valores coletivos úteis também para outros desafios da nossa democracia. Ou continuarmos transitando no subdesenvolvimento.

Epidemia

Entre os anos de 2000 e 2009, foram cerca de 452 mil mortes no trânsito brasileiro. Entre 2010 e 2019, a Década da Segurança no Trânsito, 480 mil. O Brasil ocupa a 5ª posição no mundo em número de mortes no trânsito e a 2ª em mortes por acidentes com motos. É a maior causa de crianças e jovens entre 5 e 29 anos de idade. Além destas mortes, temos por ano outras 235 mil pessoas com sequelas graves ou invalidez em decorrência deste ambiente violento.

Alto custo

Segundo o IPEA, os “acidentes” de trânsito consomem R$ 50 bilhões por ano (R$ 500 bilhões por década), em atendimentos pré-hospitalar, hospitalar, pós-hospitalar, perda de produção, danos materiais, processos e danos à propriedade pública e privada. Eles demandam 60% dos leitos de UTI e 50% das cirurgias de emergência no SUS. Não estão incluídos aqui o impacto social e previdenciário, por exemplo, os traumas psicológicos e reflexos na vida dos sobreviventes, os investimentos em carreiras perdidos ou as pensões e aposentadorias precoces. Sem falar no sofrimento e nas perdas pessoais e familiares.

Maus valores e hábitos

Não se pode falar em “acidentes” de trânsito, como uma fatalidade, mas sim no resultado de nossas escolhas baseadas em maus valores: desatenção, esperteza, egoísmo, imprudência, machismo, arrogância, libertinagem. Representados por um sem fim de atitudes diariamente presentes e facilmente perceptíveis em cada trecho das ruas e estradas brasileiras.

A falência do comando & controle

Os números provam a ineficácia da burocracia viária e do comando & controle estatal, com forte viés de arrecadação fiscal, punição sem educação (algo atrasado em gestão) e non sense. Números dos resultados vistos acima, de um lado. E de outro, números de multas por pegadinhas, das regras de trânsito detalhistas, prolixas e algumas esdrúxulas (entre os 341 artigos do Código Nacional de Trânsito), das operações de controle documental repetido e desnecessário, dos investimentos em obras sem prioridades acertadas.

A necessidade da governança

A solução está na construção de uma governança compartilhada e responsável, onde o império dos bons valores predomine sobre a burocracia e suas regras míudas; onde a pactuação, a cidadania, a autorresponsabilidade, a educação, a comunicação e a boa gestão intersetorial sejam prioridades estratégicas das políticas públicas – não a punição por pegadinha ou a regra inútil; onde motoristas cidadãos sejam instados e educados para as boas práticas e bons valores, mais do que por obediência momentânea e pontual; que as regras da mobilidade sejam simples, poucas, porém inteligentes, eficazes e necessárias.