A primeira imagem que surge no local é um grupo de crianças jogando bola com as mães. Do outro lado, num segundo plano de visão, uma criança de aproximadamente oito anos se olha no espelho, com um sorriso singelo, meio canto de boca. O cabelo acabara de ser cortado pelo pai. Logo adiante, no Centro Comunitário do Setor Santo Amaro, na região norte da Capital, o que há é um acampamento. São os indígenas Warao, oriundos do Delta do rio Orinoco, na República Bolivariana na Venezuela, que faz fronteira com a Amazônia brasileira. 

No canto direito do local, vários colchonetes no chão, três redes e roupas empilhadas em todos os demais cantos de um grande cômodo. Em meio a tantas faltas, de alimento, roupas, produtos de higiene, parece faltar também a própria dignidade aos indígenas venezuelanos. Em Palmas os refugiados estão vivendo basicamente da solidariedade de terceiros e do poder público.

Chama a atenção no local a falta de objetos escolares no acampamento. Apesar de abrigar  11 famílias e 14 crianças, com idade de 6 meses a 16 anos, nenhum livro e nem mesmo um caderno e lápis é visto entre os pertences dos refugiados. 

Acampamento

“Todos deixaram as escolas e estão sem estudar, desde que fugimos do país. Sabemos que nossas crianças são o futuro da nossa gente, seja no Brasil ou na Venezuela, mas agora o que posso dizer é que esse futuro com esperança ainda se parece um tanto distante para nós”, afirma o professor de educação física, o venezuelano Giovanni Ramos, 33 anos. Ele encontrou uma ocupação como ajudante em uma loja de produtos agrícolas em Palmas.

Giovanni conta que lecionou por 11 anos em Tucupita, capital do estado de Delta Amacuro, na Venezuela. Segundo ele, a Educação era sua vida e desde que saiu da aldeia, encontrava nos livros, no saber, e no quadro de giz a possibilidade de contribuir na transformação do seu país. “Minha vida era boa, moça. Eu tinha casa, trabalho, uma família. Gostava da minha terra… Então estava tudo certo”.

Mas o “estava tudo certo” para Giovanni e tantas outras famílias abrigadas no centro, não durou muito. Desde 2015, mais de 4,5 milhões de pessoas foram forçadas a sair de suas casas para escapar da crise político-econômica no país vizinho. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU),  até 2020 - último dado divulgado - o número subiu para 6,5 milhões de refugiados. 

“Eu  pensei muita coisa antes de sair da Venezuela. Ou ficaria na crise ou entraria no Brasil sem conhecer ninguém. É difícil. Meu primeiro salário como professor dava pra comprar tudo. Geladeira, alimentação, dava pra comprar tudo, moça. A gente não passava dificuldades e ainda sobrava dinheiro. Ultimamente, lá, meu salário só dava para comprar um pacote de arroz e um quilo de frango. O dinheiro que eu estava ganhando durante todo o mês dava para alimentar minha família por apenas um dia. Então vendo minha filha, que não tinha roupas, nem sapato e nem comida, tomei a decisão de sair do país em julho de 2019”. 

Peregrinação pelo Brasil longe dos livros escolares

A família do professor deixou o país antes da pandemia para o Brasil, perto de Roraima. Antes de chegar em Palmas, em setembro do ano passado, alguns destinos entraram na rota dos imigrantes. Manaus (AM), Belém (PA), e Açailândia (MA). Em nenhum deles havia escola para as crianças. “Chegamos aqui na Capital e ficamos nos semáforos da Teotônio Segurado. Íamos arrecadando dinheiro no sinal. Hoje estamos, pelo menos, debaixo de um teto, não pega chuva. Mas minha filha, hoje com 4 anos, continua sem educação e a que tinha 9 anos, na época, voltou para a Venezuela. Como professor sei da importância da escola. Eu sonho com isso para minhas meninas. Eu quero que elas tenham uma profissão, sejam respeitadas e tenham dinheiro, pelo menos, para comprar comida”.

Durante a entrevista com Giovanni, um grupo de sete crianças cercam o fotógrafo. Curiosos, analisavam os equipamentos e observavam atentas às perguntas feitas ao seu povo. Ladeavam o professor Jesus Manoel Tobá, 40 anos, e a esposa Silmara Gonçales, 37 anos. Eles estão há três anos no Brasil e há seis meses em Palmas.

Jesus trabalha na mesma empresa que Giovanni. A esposa dele fica responsável pelo preparo das refeições comunitárias, servidas para todos os abrigados do local. “Fazemos três refeições: café, almoço e janta”, diz a senhora. 

O casal tem quatro filhos, um de 19 anos, outro de 14 anos, o penúltimo de 10 anos e o caçula de 8 anos. Nenhum estuda. Nenhum frequentou alguma escola no Brasil. Eulices Manuel Tovar Gonzales, 14 anos, olhava curioso para as anotações do bloco de reportagem. Questionado se tinha vontade de entrar para uma escola no Brasil, o menino apenas sacudiu a cabeça, com muita firmeza, olhou para a mãe com canto de olho, e, com sotaque misturado ao Português que está aprimorando em Palmas, pronunciou as seguintes palavras: 

“Estou há três anos sem estudar. Na Venezuela eu fazia o segundo grau. Sinto muita falta da escola, dos meus amigos, dos meus professores. Tenho saudade de sair todos os dias e ir à escola. Não sei o que quero ser não, moça, mas quero estudar, quero ter dinheiro, comida e conhecimento”. 

Venezuelanos

Centro de apoio do Ministério Público acompanha o caso escolar

O Ministério Público do Tocantins (MPTO) acompanha a situação dos refugiados por meio de um procedimento instaurado pelo Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça da Infância, Juventude e Educação (Caopije), no início do mês de agosto. O foco é agregar as crianças venezuelanas na sala de aula, 

Segundo o órgão, o centro de apoio intenciona discutir estratégias para garantir o direito de acesso dessas crianças e adolescentes à educação. O caminho para viabilizar é um comitê interinstitucional montado para acompanhar e desenvolver ações articuladas destinadas ao grupo migrante.

O comitê é composto também pelo Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Secretarias da Educação do Estado e do Município de Palmas, Fundação Nacional do Índio (Funai) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e há um acordo para  se reunirem ordinariamente todo mês.

O  coordenador do centro de apoio, o promotor de Justiça Sidney Fiori, afirma que as ações devem ser implementadas e desenvolvidas pela Secretaria de Educação e Cultura (Seduc) e pela Secretaria Municipal de Educação (Semed).

O ministério entende que, atualmente, as redes de ensino do estado e a municipal de Palmas não dispõem de professores habilitados em Warao – língua materna dos indígenas – e esta é uma das razões que dificultam o ensino dessas crianças.

O promotor menciona outra missão do centro. Além de promover ações no campo educacional, ainda terá a missão de articular políticas públicas de moradia, trabalho, renda, saúde, educação e assistência social. Outra frente é induzir uma política pública migratória de crianças e adolescentes que leve em conta as particularidades culturais e o modo de vida dos migrantes indígenas e não indígenas que chegam ao Tocantins. 

“O que levou a gente a criar esse grupo foi aquela necessidade de fazer um atendimento mínimo a essas pessoas e oferecer direitos básicos das crianças e adolescentes desse grupo. Elas são vistas diariamente com os pais nos semáforos, nas esquinas, pedindo dinheiro, pedindo esmola e isso gerou um incômodo. Então  resolvemos cobrar do Município e do Estado ações efetivas, principalmente na área da educação”, explica o promotor.

Segundo ele,  a princípio, esse grupo iria ficar apenas um período em Palmas, porém, com o passar dos dias ficou claro que eles não iriam embora do Tocantins. “Eles resolveram de verdade montar o seu acampamento, realmente morar em Palmas, nós vimos então a necessidade de colocar essas crianças para estudar. Mas, como entrave, tem toda essa questão deles serem indígenas. Será que onde eles moravam, eles frequentavam a escola? Que tipo de escola é essa? Que tipo de conteúdo tem que ser ministrado? Então, nós precisávamos também de orientação, foi quando entrou o MPF (Ministério Público Federal), que tem antropólogo para orientar nessa questão”. 

Além disso, o promotor destaca que o Ministério Público Estadual, junto com a sua equipe técnica, e as secretarias da educação municipal e estadual, fez diversas reuniões, que contou com um representante dos venezuelanos. Após algumas reuniões, o comitê concluiu que as crianças seriam atendidas na Escola de Tempo Integral Padre Josimo. “É uma forma de não deixá-las expostas nas ruas, nos semáforos e pedindo esmolas. Criamos então esse comitê exatamente para acompanhar e monitorar essas crianças”.

Antropólogo do MPF analisa medidas para inserção educacional

O antropólogo do Ministério Público Federal (MPF), Márcio Santos, relatou que os indígenas venezuelanos Warao começaram a se instalar no Brasil em 2014, porém, em 2016, eles se instalaram praticamente nos estados de Roraima, Amazonas e Pará. No entanto, a partir de 2018, os refugiados começaram a se espalhar por diversos estados do Brasil, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. 

Quanto à educação das crianças, o antropólogo destaca que um levantamento realizado pelo MPF, em 2018, apontou que de todos os Warao que estavam no Brasil naquela época, 47% tinham entre zero e 14 anos. “Realmente é muita gente que estava em idade escolar, a grande maioria ainda tá, e desde então, não existia e não existe ainda, assim, em nenhum lugar, até que eu tenha conhecimento, uma política consolidada de educação voltada para eles”, diz.

Santos lembra de algumas iniciativas pontuais organizadas por Organizações Não Governamentais (ONGs), por movimentos sociais, igrejas, mas nada formalizado até a formação do comitê. “Acaba sendo mais uma maneira de ter uma ocupação, ter alguma coisa para crianças, para jovens fazerem do que uma educação formal”. 

Ele ressalta que a legislação brasileira garante aos povos indígenas uma educação diferenciada, inclusive bilíngue. E não é porque os Warao são refugiados, que eles deixam de ter esse direito. “É especialmente complexo, mesmo porque, na verdade, só o bilinguismo talvez nem dê conta, porque eles querem aprender português, mas os adultos alguns falam espanhol e a língua nativa deles é uma outra língua, a warao”. 

O especialista pontua que uma discussão que tem sido feita em muitos estados envolve os indígenas que já atuavam na área da educação para criação de  um currículo ou de turmas que incluam as crianças e jovens warao. Santos destaca que muitos desses adultos têm formações profissionais e inclusive na área de educação, e quando chegaram ao Brasil passaram a viver do que conseguem no dia a dia. O antropólogo conta que alguns locais também buscam alternativas para contratar e remunerar os Warao para trabalharem na área da educação. 

Santos avalia que um passo preliminar e importante para a educação funcionar  com as crianças Warao é oferecer confiança às mães, para que aceitem ficar parte do dia longe das crianças menores. Segundo ele, há um estigma de que há uma exploração das crianças na rua, quando o gesto indica proteção, cuidado, por ser responsabilidade materna.

“Na verdade, é parte da cultura deles, a mãe está sempre com aquela criança. E como parte da atribuição delas é conseguir dinheiro na rua, nem que seja pedindo, a criança está junto lá, mas não é pra ser exposta, é porque a mãe está cuidando dela, ela deixa a criança sozinha em um abrigo, numa casa, seria algo até pior”, explica.

Município ofereceu salas e prepara contrato de intérprete

Dados da Prefeitura de Palmas apontam que 68 venezuelanos passaram pelo município desde 2019. Atualmente, a cidade abriga 11 famílias indígenas da etnia Warao cadastradas e um total de 32 venezuelanos, entre os quais 14 crianças e adolescentes.

Por nota, a prefeitura informa que a Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) atende os imigrantes sob a coordenação da Diretoria de Proteção Social Especial (DPSE). O órgão garante executar, de forma sistematizada, o planejamento elaborado no Plano de trabalho de atendimento aos Warao.  A pasta cadastrou todos os imigrantes no Cadastro Único 

Uma das ações é o acampamento no setor Santo Amaro, adaptado com instalações elétricas e hidráulicas e ganchos para uso de redes nos cômodos. O órgão cita ainda a recarga semanal de gás de cozinha, entrega de refeições in loco, através de marmitas individuais de segunda a sexta-feira. Também fornece materiais de limpeza e higiene. 

O município destaca ter recebido um recurso do governo federal para efetivação da execução do que foi planejado no Plano de trabalho que foi enviado ao Ministério  da Cidadania e Secretaria Nacional de Assistência Social-CNAS.

O órgão também cita as reuniões do comitê interinstitucional e visitas técnicas das famílias para conhecer as unidades educacionais e a disponibilização de vagas para todas as crianças no Cmei Sementes do Amanhã e ETI Padre Josimo Tavares.

Conforme a prefeitura, as crianças com idade escolar para cursar o Ensino Fundamental já foram matriculadas na ETI Padre Josimo Tavares, e as que são público-alvo da Educação Infantil, as famílias optaram por não matriculá-las. 

O Executivo Municipal também afirmou que está em tramitação o processo de contratação de intérprete da língua Warao para a língua portuguesa. Segundo o Município, todas as crianças em idade escolar não são alfabetizadas e não falam a língua portuguesa.

Estado defende execução de plano pedagógico conjunto

A Secretaria de Estado da Educação, Juventude e Esportes (Seduc) afirma que acompanha, juntamente com a Secretaria Municipal de Educação de Palmas (Semed) e demais órgãos do comitê, a situação das crianças e adolescentes refugiados. 

A partir de um processo de escuta das demandas educacionais da comunidade indígena Waraos, o órgão afirma ter elaborado, em parceria com a Secretaria Municipal de Palmas,  um plano pedagógico conjunto, que tem o objetivo de oferecer atendimento bilíngue a esse público nas escolas da rede municipal. 

Segundo a Seduc, o plano está na fase de matrícula dos estudantes. Depois, eles passarão por um período de adaptação ao ambiente escolar e preparação para avaliação de classificação, para identificar em quais anos deverão ser matriculados e retomar sua vida estudantil afetada pela crise no país vizinho e todo o processo imigratório para o Brasil.