“Quando eu tive contato com a Lei Maria da Penha, foi quando me vi. Eu enxerguei que estava em uma situação de violência, em uma relação abusiva, e aí eu saí de casa com a roupa do corpo tempos depois dele colocar uma faca no pescoço”. Foi assim que começou a história de reconstrução da vida de Jessica Rosanne Rodrigues Gomes, após passar seis de seus 30 anos sofrendo violência doméstica. Ela está nas estatísticas como uma das mais de 1.500 vítimas de violência no Tocantins por ano, mas após sete anos conseguiu, com ajuda da Rede de Proteção à Mulher, sair do ciclo de abuso, ressignificar seus dias e voltar a sorrir para as câmeras e a vida. 

Atualmente supervisora comercial, Jessica em outros tempos já foi empregada, vendedora, recepcionista (tudo ao mesmo tempo) e também era esposa e vítima da violência doméstica, desde a mais sutil até ter uma faca em seu pescoço como forma de ameaça. Casou aos 17 anos, mas já vítima de abuso sexual aos 7 anos pelo próprio tio, ela não conseguia enxergar a dimensão que um dia seu relacionamento já “fadado ao fracasso” tomaria, como ela mesma disse. “Eu era muito religiosa e acabei me forçando a casar cedo. Mas foi um dos meus erros porque não tive tempo para observar o meu relacionamento que a todo momento apresentava sinais de que eu estava dentro de uma relação abusiva, mas eu não conseguia perceber”, conta. 

Seu sofrimento começou por meio de violência moral, com proibições quanto ao que vestir, comer e até que jeito cortar o cabelo. Depois evoluiu para violência patrimonial já que ela não tinha controle sob o próprio dinheiro, ainda que trabalhasse em dois empregos. O estopim para Jessica foi quando se viu nas mãos do seu esposo tentando obrigá-la a fazer o que não queria com uma faca em seu pescoço. “Aquele ato da pessoa chorar, dizer que me ama e depois estar querendo colocar uma faca no meu pescoço, me ameaçando, a gente pensa ‘que amor é esse?’”, frisa. 

O questionamento pessoal quanto aos rumos que seu relacionamento estava tomando gerou uma revolta que a fez tomar um caminho que mudaria tudo. “Eu fazia uma graduação na época e decidi fazer meu tcc [trabalho de conclusão de curso] sobre violência doméstica e foi quando tive contato com a Lei Maria da Penha. Foi  aí que eu me vi. Foi quando eu enxerguei que estava em uma situação de violência e aí eu saí de casa com a roupa do corpo”, conta a supervisora.

O dia seguinte para a Jessica foi surpreendente até para si própria, pois ela optou por aproveitar o momento de coragem e buscar sua libertação, ainda que sofrendo muito. “No outro dia eu estava na porta da Defensoria Pública [DPE-TO] para pedir ajuda quanto ao meu divórcio. Eles me atenderam e me ajudaram em tudo. Isso foi muito importante  pra mim porque eu não tinha nada, eles custearam tudo e eu pude recomeçar”, lembra. 

Além de um processo de divórcio demorado porque o seu ex não queria assinar os papéis, a jovem passou por muitas dificuldades, mas ela enfrentou porque sabia que já tinha conseguido sair de algo muito pior: o ciclo da violência. Passou a morar com uma amiga em uma kitnet de um cômodo e precisou trabalhar até de madrugada para conseguir tentar se recolocar no mercado. 

 

 

A violência psicológica de Maria

Assim como para Jessica, os dias seguintes foram de luta para Maria (nome fictício) que passou 13 anos em um relacionamento com agressão psicológica, matrimonial e física. Ela descobriu de forma bem inesperada que estava em um relacionamento abusivo. “Foi numa prova do Enem que tinha uma questão sobre violência contra a mulher. Lá tinha uns textos complementares sobre violência doméstica e eu me vi em todos os sinais”, explica. 

Depois de passar no vestibular com uma boa redação sobre o assunto que tanto entendia e sofria na pele, Maria começou a ter problemas com o marido que passava meses trabalhando em outras cidades enquanto não recebia apoio para estudar. 

Tempos depois ela foi abandonada após descobrir e questionar uma traição e precisou da própria força e da Rede de Proteção para se reerguer. “No momento em que eu descobri que tinha todo um sistema que poderia me ajudar quando fiquei desesperada tudo mudou. Eu fui na Delegacia da Mulher que me encaminhou para a Defensoria e eles me apresentaram o Centro de Referência da Mulher Flor de Liz, onde tive tratamento individual e em grupo, e percebi que sou vítima mas também posso unir força com outras mulheres e fazer diferença”, explica a jovem. 

Mas para chegar até esse ponto, Maria passou por situações de pânico, abandono dos estudos, dificuldade de trabalhar e mais sete longos anos sofrendo violência psicológica mesmo depois de divorciada. “Eu fiquei sem nada com o divórcio, abri mão de tudo porque só queria a guarda do meu filho. Depois comecei a ir atrás dos meus direitos e a pedir pensão que ele só pagava quando queria. Precisei executar pedido de pagamento algumas vezes e ele chegou a ser preso. Na época foi muito difícil porque ele sempre tinha acesso a mim e me destruía psicologicamente. Ele falava que eu não conseguiria fazer nada da vida, que eu não tinha que ir atrás do dinheiro dele já que eu daria conta sozinha”, lembra. 

Conforme seu relato, Maria e seu filho, que na época do divórcio tinha apenas sete anos, tiveram problemas psicológicos devido a ameaças de morte. “Ele e a família dele disseram para o meu filho que iam me matar, isso nos destruiu. Ele chorava quando eu saía de casa com medo de eu não voltar e eu não conseguia mais nem ir para a faculdade, o pânico me paralisava”, afirma. 

Recomeço

Com a ajuda do tempo, mas principalmente da terapia, apoio jurídico e assistencial pela Rede de Proteção envolvendo DPE, Delegacia da Mulher, Centro de Referência, Casa Abrigo e outros órgãos, Maria e Jessica conseguiram reconstruir suas vidas.

“Uma das coisas que me fez evoluir muito foi a medida protetiva porque meu ex parou de ter acesso a mim e eu consegui voltar a viver. Estou estudando para voltar à faculdade, trabalhando, já saio com meu filho e também tenho um novo relacionamento. Além disso, os grupos do Flor de Liz e ver a força das mulheres me deu vida, ter apoio realmente me deu vida”, conta Maria. 

Já a Jessica está terminando a segunda graduação, se recolocou no mercado de trabalho e está escrevendo um livro sobre a história de mulheres que também conseguiram superar a questão da violência doméstica e os mecanismos que elas utilizaram para conseguir sair de relações abusivas ao lado da sua colega de faculdade e de quarto, Natalia Rezende. “Eu escrevi o  livro ‘Mulher, Ser’ porque queria que outras mulheres se inspirarem e conseguissem sair do ciclo que mudou toda minha vida. Hoje eu me considero uma pessoa realizada, feliz, com autoestima, me sinto dona de mim”, ressalta, lembrando de uma palavra que a define atualmente: recomeço. 

Saiba mais sobre a Rede de Proteção e Defesa da Mulher na segunda matéria desta reportagem especial. 

Confira o minidocumentário “O dia seguinte” dirigido por Lauane dos Santos, filmado e editado pela repórter fotográfica Lia Mara: