Dídimo Heleno

Quem conhece minimamente a Bíblia sabe que o “povo de Israel” foi o escolhido por Deus, que o conduziu, por meio da liderança de Moisés, até a denominada “Terra Prometida”, onde encontraria fartura de “leite e mel”. Para tanto, essa multidão enfrentou muitas agruras no caminho, mas sempre contando com o amparo divino, embora a ira do Senhor, de vez em quando, se voltasse contra os próprios israelitas. Os egípcios sentiram como poucos o peso da mão de Deus e foram vítimas das famosas dez pragas, tendo assistido ao rio Nilo virar sangue, nuvens de gafanhotos, infestação de piolhos, o dia virando noite por conta de tanta mosca, úlceras e chagas, chão coberto por rãs e outros infortúnios. 

Essa introdução bíblica é apenas para dizer que o Brasil, muitas vezes, parece ser um dos inimigos do povo de Israel. É inacreditável o que se passa debaixo desses céu e sol tropicais. O que assistimos recentemente é suficiente para justificar uma terapia coletiva. Quem suporta tanto em tão pouco tempo? Num dia vimos o presidente Bolsonaro vociferar ameaças contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, dizer que não acataria qualquer decisão judicial de sua lavra e colocar em xeque o sistema eleitoral, tudo isso diante de uma multidão em transe e com sangue nos olhos.

Dois dias depois lá estava o mesmo presidente, ao lado de Michel Temer que, qual fênix, ressurgiu das cinzas para aconselhar o chefe da Nação a escrever uma carta pedindo desculpas ao “cabeça de ovo” – apelido mais ameno dado ao ministro Moraes pelos bolsonaristas – inclusive elogiando os dotes professorais e jurídicos do magistrado. Enquanto isso o tal Zé Trovão, um tipo que se parece com aqueles vilões de histórias em quadrinhos, fazia vídeos ininterruptos lá do México, onde fugia de um mandado de prisão, instigando a turba a continuar com a paralisação de caminhoneiros, ato que não fazia o menor sentido e criticado pelo próprio presidente da República. 

Bolsonaro deixou perplexos os seus apoiadores. Muitos se sentiram traídos e viram o esforço e o sonho de irem até Brasília no dia 7 de setembro como perda de tempo. Estavam envergonhados com o que chamaram de “covardia” do líder. Grande parte esperava pelo golpe e que o tão almejado “Brasil dos bons costumes” seria instalado no dia 8, nos enviando de volta, quase que instantaneamente, à Idade Média. Alguns chegaram a protagonizar momentos tétricos e hilários ao postarem vídeos comemorando um suposto “estado de sítio”. Um deles chorou de emoção, proporcionando, talvez, a maior vergonha alheia do século XXI. 

De concreto apenas a tal carta, o que acalmou imediatamente os ânimos do mercado. Michel Temer é homem ponderado, que enfrentou uma greve de caminhoneiros durante o seu curto governo, acostumado às lides politiqueiras do país, um dinossauro da era mesozoica que conhece o Congresso mais do que ninguém, além de ter sido exímio professor de Direito Constitucional, muito respeitado na área. Andou visitando o cárcere no período “lavajático”, mas foi a ele que Bolsonaro recorreu nessa hora de agonia. Conseguiu convencer o líder da Nação de que a sua postura representava passaporte para o limbo e que a missiva era a única saída. Que o Deus de Israel tenha piedade do não escolhido povo brasileiro.