O chão de terra vermelha se mistura às casas construídas em formatos desalinhados e apenas rebocadas, sem o acabamento completo. No entorno delas, o lixo espalhado em terrenos vazios. Imóveis sem roçagem e nenhum tipo de estrutura que se assemelhem ao desenvolvimento de outras áreas da Capital. Esse é o retrato do loteamento Água Fria, localizado no extremo norte de Palmas. O local não oferece creche, escola, praça, saneamento básico, rede de esgoto e nem mesmo a sesação de dignidade às 150 famílias que pagam os lotes em prestações divididas por vários anos.

O cenário se confunde com um lado rural da Capital, mas que deveria ser urbano pela quantidade de pessoas que moram por lá. Casas simples, mas todas construídas na esperança de regularização e moradia fixa para as famílias que investiram seu dinheiro e agora desejam se estabelecer nas residências. Locais que se tornaram uma das poucas alternativas que o dinheiro dessas famílias conseguiu pagar.

Este é o caso da auxiliar administrativa Maria Jerlândia Santiago Santana, 28 anos, maranhense de São Luiz. Ela decorou a sala com carpete, sofá espaçoso, TV e vários brinquedos do filho Pedro Jorge Santana, de 5 anos de idade. O menino estuda em uma escola na região norte, mas longe da sua casa. O transporte é realizado por uma van do município, porém, o desejo da mãe é que ele pudesse estudar em um lugar mais perto. “Mas como posso querer? Não temos nada aqui. Nem asfalto, imagina escola”.

Loteamento

Maria Jerlândia relata que sua vinda do Maranhão para Palmas implicava em diversas oportunidades na vida pessoal e profissional e uma delas era realizar o sonho da casa própria. Tudo estava encaminhado quando ela comprou um espaço no loteamento Água Fria, em 2018, por R$ 35 mil. Ela deu uma entrada de R$ 7 mil e o restante, 45 parcelas de R$ 500,00. A casa de cinco cômodos com o banheiro começou a ser construída em maio de 2019. No ato da compra ela foi informada que o local não tem título de propriedade, apenas cessão de direito e a promessa é que seria regularizado. Então em julho daquele mesmo ano ela se mudou. Porém, o sonho da casa própria veio acompanhado de dificuldades. “O local é escuro, não tem asfalto, a água encanada chegou somente há um ano. Estamos esquecidos. No ano passado vários políticos passaram por aqui e prometeram que iriam regularizar a nossa área e colocar infraestrutura. Mas até agora só temos a lembrança dessas promessas. Não sei muito o que dizer para vocês. Mas tenho medo de ficar sem nada. Tenho medo de ficar sem minha casa, sem meus sonhos...”.

As casas no loteamento não têm organização urbana e nem mesmo uma sequência de ruas ou alinhamento ao serem construídas. Algumas estão localizadas em um barranco, outras próximas a abismos e também tem uma terceira característica: residências levantadas em cima de aterros. Nessa última descrição se classifica a casa da auxiliar de serviços gerais Josefa Lidiane Rodrigues Teles. As paredes da cozinha, sala e de um dos dois quartos da construção estão com rachaduras expostas. Segundo ela, quando chove as paredes começam a tremer, ela acredita que a casa está construída em uma área irregular, percepção constatada ao longo dos quatro anos que reside no lote. “Tem uma situação que eu fico desesperada só em lembrar: estava grávida de oito meses e tive que sair de casa correndo após uma chuva. As paredes começaram a tremer e aí surgiram essas rachaduras que vocês estão vendo. Como posso viver tranquila assim”?, questiona a entrevistada.

Os relatos das dificuldades enfrentadas por Josefa e diversos moradores do loteamento Água Fria seguem uma longa lista, mas algo que chama a atenção é que parte das residências não tem energia regularizada. A luz só é possível através de gambiarras expostas. Não há um local adequado para depositar o lixo e parte dos resíduos fica espalhada em áreas verdes e até próximo das casas. 

“O dono dos lotes, o seu Valdemar, que nos vendeu isso aqui, prometeu  que o bairro teria creche, asfalto, escola, que viveríamos bem... Que mentira! A minha casa é dentro de um aterro. Ele disse que a minha casa não cai. Mas que garantia eu tenho? Se nem documento informando que paguei o lote existe. A situação é essa que vocês estão vendo. Aí eu pergunto: a culpa é de quem? Dele? Do poder público? Nossa que não é. Fomos enganados, entregamos nosso dinheiro e nem sabemos se essa será mesmo nossa casa”, diz a dona de casa Juliana Rodrigues, 32 anos.

Loteamento

Loteamentos irregulares em Palmas é realidade atual

Apesar de ter sido inicialmente planejada, a cidade de Palmas nas últimas décadas passou a ser conhecida como uma das capitais com o maior índice de especulação, atraindo inúmeros investidores dos setores de construção civil e imobiliário. Imóveis urbanos e rurais que no passado tinham pouco valor ganharam importância e motivaram vários fazendeiros e proprietários de terras, no entorno da cidade, a iniciar o parcelamento ilegal de terras. Uma vez loteadas, essas pequenas áreas, sem qualquer infraestrutura, atraíram principalmente pessoas de baixa renda.

O Ministério Público do Tocantins vê irregularidades nestes loteamentos. O órgão aponta que os erros não se restringem à fase de aprovação do projeto, mas, principalmente, na fase de execução. De acordo com o órgão, alguns loteadores descumprem compromissos exigidos na Lei do Parcelamento, como áreas destinadas a sistemas   de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público (a exemplo de áreas para instalação de praças, escolas, postos de saúde, etc).

Também segundo o órgão, os loteamentos irregulares são entregues aos moradores sem a infraestrutura básica, como rede de esgoto, energia elétrica, iluminação pública, rede de distribuição de água tratada e asfalto.

O Ministério Público ajuizou oito Ações Civis Públicas relativas a parcelamento irregular do solo, sobretudo quanto à região Norte de Palmas, onde estão os loteamentos Água Fria e Jaú. As ações, propostas pela 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que possui atuação na área de defesa da ordem urbanística, têm como parte os loteadores e o Município de Palmas.

Ministério Público acredita que Município deve fiscalizar cumprimento dos requisitos 

O Ministério Público destaca que cabe ao Município o dever de fiscalizar o cumprimento dos requisitos para o parcelamento do uso do solo, porque é a prefeitura que possui o poder de polícia administrativa, limitando, restringindo ou mesmo punindo eventuais infratores à ordem urbanística, tudo isto inserido no Capítulo da Política Urbana, em seus artigos 182 e 183. A lei destaca que o Município deve garantir assim a promoção de um desenvolvimento urbano compatível com o adequado espaço da cidade e a utilização sustentável e equilibrada do ambiente natural.

Promotora em assentamento

“E é justamente esse último dever que vem causando sérios transtornos em nossa Capital, vez que o Município de Palmas, não vem acompanhando a crescente especulação no mercado imobiliário, especificamente no que se refere aos loteamentos urbanos, deixando de fiscalizar as exigências e requisitos mínimos para o parcelamento e loteamento do solo”, afirma a promotora da 23ª Promotoria de Justiça da Capital, Kátia Chaves Gallieta.

A promotora salienta que alguns empresários do ramo imobiliário instalados em Palmas “se sentem livres e tranquilos em parcelar o solo no entorno desta Capital, sem se preocupar em atender aos requisitos legais, da forma e modo como lhes aprouver, sem temer qualquer ato fiscalizatório derivado do poder de polícia dos órgãos municipais”.

Loteamento

Loteamentos desfeitos

Diante dessas irregularidades, o órgão pede nos processos judiciais o desfazimento do loteamento, com a recomposição da gleba ao estado anterior à fragmentação (mediante a apresentação de Plano de Recuperação de Área Degradada – PRAD – ao órgão ambiental competente) e indenização dos prejuízos às pessoas que investiram dinheiro e compraram os lotes. “Ou, dependendo da situação, caso o loteamento se encontre em área urbana e possa vir a ser regularizado, a obrigação de fazer consiste em promover a regularização do loteamento e implantar toda a infraestrutura adequada para essas famílias”, ressalta Kátia.

Especulação imobiliária é gargalo em Palmas 

Na visão do urbanista e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT) Lúcio Cavalcante, a especulação imobiliária existe em Palmas desde o início da sua implantação e foi utilizada pelo próprio governo para viabilizar a cidade. Segundo ele, a preocupação inicial era doar ou vender terrenos para atrair a população, em vez de pensar em estratégias de ocupação. “Então desde o início, a ocupação foi rarefeita e dispersa pelo território, com as populações mais pobres sendo empurradas para fora do plano urbanístico inicial. Hoje essa situação está de certa maneira descontrolada havendo um território imenso onde podem se desenvolver loteamentos urbanos, mas sem a garantia de uma ocupação que sustente serviços públicos, infraestrutura, comércio, transporte e equipamentos essenciais de saúde, educação e segurança, trazendo um grande custo ao poder público e à população”, acrescenta.

Ele analisa que as ocupações irregulares no Água Fria, na região norte da cidade, acabam sendo um reflexo do descontrole da ocupação urbana e da especulação fundiária. Ele destaca que boa parte das glebas urbanas na região central estão sem ocupação, aguardando uma maior valorização, ou mesmo uma demanda de rendas mais altas para serem loteadas e comercializadas. “Porém isto não reflete nossa estrutura socioeconômica onde boa parte da população possui uma baixa ou média renda. Ou seja, não há a oferta de lotes urbanizados a valores que possam pagar. Esta situação acaba incentivando este outro mercado de terras que é feito sem a aprovação da prefeitura, sem registro no cartório e sem a garantia da infraestrutura mínima, e longe da cidade consolidada”.

O professor ressalta que do ponto de vista urbanístico, a regularização da grande quantidade de loteamentos irregulares em Palmas custará bem mais caro a longo prazo do que as ações necessárias para se coibir esses loteamentos, do ponto de vista da fiscalização, e implantar opções de oferta de terra urbanizada, com a implementação de instrumentos do plano diretor que obriguem os proprietários a lotear suas áreas (vazios urbanos), bem como soluções de loteamentos populares implantados pelo poder público para aquela população de baixa renda.

Cavalcante aposta que é possível desenvolver a estrutura necessária no loteamento Água Fria, mas com um planejamento claro do que se pretende alcançar no futuro. “Gastar todas as energias e recursos enxugando gelo, tratando do problema quando ele já não tem uma solução viável, não é a melhor estratégia”.

Professor

O professor menciona que no caso do Água Fria deve-se trabalhar com a busca e responsabilização daqueles que promoveram o loteamento ilegal (o loteador é responsável pela aprovação, registro e implantação da infra-estrutura básica); a regularização daqueles loteamentos onde não é possível a sua reversão, com base na consolidação da ocupação; avaliar criteriosamente a venda para pessoas que adquirem não com o objetivo de ali morar mas sim especular. “Neste caso não é obrigação do poder público regularizar os lotes. Além de fazer a remoção de famílias em áreas não consolidadas para o loteamento a ser regularizado, maximizando os investimentos públicos. Isto tudo não exime da constante vigilância e da ampliação da capacidade de fiscalização pela prefeitura para coibir novas ocupações”.

Prefeitura de Palmas não diz quando irá regularizá a situação 

Somente após 12 dias do prazo solicitada para resposta, a Prefeitura de Palmas, por meio da Secretaria Municipal de Assuntos Fundiários (Semaf), afirmou através de uma nota que, conforme previsto na Lei Complementar Nº. 400/18, na qual dispõe sobre o Plano Diretor Participativo do Município de Palmas, bem como as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), o loteamento Água Fria atualmente possui 150 famílias e a região encontra-se em fase de regularização fundiária. "Até o momento foi feito levantamento social e selagem dos imóveis e as famílias permanecerão no local", destacou um trecho da nota. 

Mesmo com os questionamentos do Jornal do Tocantins, o órgão não informou o que será feito para a regularização fundiária das famílias que residem nom loteamento.