Em 2020, os brasileiros conviveram não só com as perdas para a Covid mas com o aumento de 4% das mortes violentas, interrompendo uma sequência de dois anos de queda nos números. Foram 50.033 vítimas, 78% delas mortas com armas de fogo, em uma alta puxada pelos estados do Nordeste.

Os dados são do 15º anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (15). As mortes violentas intencionais, pelo critério do relatório, são a soma dos homicídios dolosos (83% do total da categoria e que subiram 5,3%), dos latrocínios, das lesões corporais seguidas de morte, dos feminicídios e das mortes decorrentes de intervenção policial.

Em 2017, o Brasil atingiu um recorde de assassinatos e a taxa chegou a 30,9 mortes para cada 100 mil habitantes. O índice caiu em 2018 e 2019, até que voltou a subir no ano passado, quando a taxa ficou em 23,6 por 100 mil.

Os alvos continuam os mesmos: homens (91%), negros (76%) e jovens (54%). É a violência a principal causa de morte, de todas as possíveis, entre os jovens brasileiros. Ela também atinge de forma desproporcional os negros, que são 56% da população.

Em um ano atípico, os picos das mortes violentas ocorreram justamente nos primeiros meses da pandemia no país. Em março e abril foram registradas, respectivamente, 4.799 e 4.786 óbitos violentos. Depois disso, há uma queda e estabilidade na curva até outubro, quando começa um novo pico de mortes.

O isolamento social imposto pelo vírus resultou na diminuição de todos os crimes patrimoniais. Houve queda de 27% no roubo de veículos e a estabelecimentos comerciais, de 17% no roubo a residências, de 36% no roubo a transeunte e de 25% no roubo de carga.

Mas a quarentena não foi capaz de frear os homicídios e pode mesmo ter influenciado no aumento deles. O recorde de desemprego e a piora da saúde mental da população são algumas das hipóteses para o aumento dos crimes interpessoais, como brigas de vizinho e feminicídios, por exemplo.

A principal explicação para a alta nas mortes, porém, está nos estados do Nordeste, que tiveram mudanças nas dinâmicas do crime organizado, com mais disputas locais entre facções. Todos os estados da região tiveram aumento da violência letal.

Outro fator é ter mais armas em circulação -1,8 milhão delas nas mãos de cidadãos comuns.

"Os próprios policiais com quem conversamos do Piauí e da Paraíba disseram que notaram um aumento do número de pessoas com armas no policiamento. Só no ano passado, foram 200 mil novas armas registradas", diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Parcela das polícias também entende que a liberação de presos em virtude da pandemia, recomendada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), não foi feita de forma criteriosa e resultou na soltura de membros de facções e de homicidas.

Isso teria aumentado a demanda das corporações, ao mesmo tempo em que tiveram quase um terço do efetivo infectado pelo coronavírus e afastado das ruas.

No Piauí, por exemplo, a curva ascendente na taxa de homicídios coincide com esse período de soltura.

CEARÁ TEM EXPLOSÃO DE MORTES

Dessa vez, os pesquisadores dividiram os estados em três grupos: o 1 com aqueles que têm dados consistentes; o 2 com os que ainda têm problemas para organizar e divulgar os dados; e o 3 com os estados em que o registro é tão precário que não permite avaliar os fenômenos criminais.

No grupo 1, as taxas de mortes violentas variam de 11,2 por 100 mil em Santa Catarina até 45,2 no Ceará. No grupo 2, a menor taxa está em São Paulo, 9, e a maior é a da Bahia, com 44,9. No terceiro grupo, a menor taxa é a de Rondônia, com 23 mortes por 100 mil, e a maior no Amapá, 41,7.

O Distrito Federal e 10 estados tiveram redução dos assassinatos. A maior queda na taxa de mortes foi no Amapá (24%), seguido de Pará (20%), Roraima (19%), Rio de Janeiro (18%), Distrito Federal (7%), Amazonas (6%), Minas Gerais (6%), Goiás (5%), Santa Catarina (2%), Acre (2%) e Rio Grande do Sul (0,3%).

No entanto, é preciso cautela, já que quatro desses estados (AC, AM, AP e RR) estão entre os que têm dados precários. Mas, tanto o Acre quanto o Pará viram a consolidação da supremacia da facção criminosa Comando Vermelho, que dominou o crime local e reduziu, com isso, os confrontos com outros grupos.

Nos outros 16 estados, houve crescimento da violência letal. São Paulo, que há 20 anos têm reduções sucessivas, teve aumento (1%).

Mas onde o número explodiu foi no Ceará (aumento de 75%). Segundo o documento, principalmente por causa do motim da PM no estado, que desarranjou políticas públicas que faziam do estado um dos principais responsáveis pela redução da taxa nacional desde 2018.

Esse processo deu margem para os planos de expansão do Comando Vermelho, que iniciou uma ofensiva sobre os territórios do seu maior rival local, os Guardiões do Estado. A violência, que estava contida, voltou.

Na sequência, os maiores crescimentos ocorreram no Maranhão (30%), Paraíba (23%) e Piauí (20%).

Com isso, o país retornou ao patamar de mortes de 2011. As taxas das regiões Nordeste (38,4), Norte (30,2) e Centro-Oeste (24,8) são maiores que a nacional.

Já as regiões Sudeste (14,6), que liderou o ranking de violência na década de 1990, e Sul (17,6) tiveram taxas abaixo da média nacional em todos os anos da última década.

Na série histórica, a região com maior crescimento dos assassinatos no período foi o Norte.

"Parece que a gente não sai do mesmo lugar. Quando diminui em uma região, cresce em outra. Muda-se o cenário regional, mas não nacional", afirma Bueno.

O problema, mostra o documento, é localizado: 138 municípios têm taxas de violência letal acima da média nacional. Somados, eles respondem por 37% de todas as mortes violentas do país.

Isso significa que, proporcionalmente, eles têm muito mais peso do que os outros 5.432 municípios brasileiros na determinação do aumento ou diminuição dos homicídios.

Sendo ainda mais específico, 36 deles possuem taxas superiores ao dobro da média nacional --ou seja, mais de 47,6 mortes para 100 mil habitantes.

A maior parte dos municípios mais letais está no Rio de Janeiro (24) e na Bahia (17).

Na contramão da curva da violência, no entanto, o país teve redução de 1,7% dos gastos com segurança pública em 2020, ainda segundo o anuário. Foram R$ 96 bilhões para a área e quem mais cortou verbas foram os municípios.

Segundo Samira Bueno, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não inovou em nada na segurança, sua principal plataforma eleitoral. O projeto-piloto Em Frente, Brasil, por exemplo, que pretendia reduzir a violência nos municípios com mais mortes, foi abandonado pela gestão com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça.

"Bolsonaro se beneficiou das mudanças feitas no governo de Michel Temer, como o repasse obrigatório de verbas da Loteria para o Fundo Nacional de Segurança Pública, que hoje é todo o dinheiro de investimento do governo federal na área", afirma.

"Ele assume a cadeira com os homicídios caindo e dinheiro. Mas estamos vendo os índices voltarem a crescer e nenhum plano nacional para reduzir a violência, com diretrizes do que é prioritário, governança ou mais recursos", diz a diretora do Fórum.