O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, foi denunciado nesta terça-feira (3) pelo Ministério Público do Rio de Janeiro sob acusação de liderar uma organização criminosa para recolher parte do salário de seus ex-funcionários em benefício próprio.

A denúncia, apresentada ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça, se refere à suposta “rachadinha” em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde exerceu o mandato entre fevereiro de 2003 a janeiro de 2019.

A prática consiste na exigência feita a assessores parlamentares de entregarem parte de seus salário ao deputado.

Também foram denunciados o policial militar aposentado Fabrício Queiroz, ex-assessor apontado como operador do esquema, e outros 15 ex-assessores de Flávio. As acusações são pela prática dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro, apropriação indébita e organização criminosa.

Em nota, Flávio disse que a denúncia já era esperada, mas não se sustenta. "Dentre vícios processuais e erros de narrativa e matemáticos, a tese acusatória forjada contra o senador Bolsonaro se mostra inviável, porque desprovida de qualquer indício de prova. Não passa de uma crônica macabra e mal engendrada."

"Acreditamos que sequer será recebida pelo Órgão Especial. Todos os defeitos de forma e de fundo da denúncia serão pontuados e rebatidos em documento próprio, a ser protocolizado tao logo a defesa seja notificada para tanto", completa a nota do senador.

A acusação foi encaminhada dois meses após a conclusão das investigações pelo Gaecc (Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção).

De acordo com o MP-RJ, a denúncia foi apresentada por meio da Subprocuradoria-Geral de Justiça de Assuntos Criminais e Direitos Humanos em 19 de outubro.

No entanto, como o sistema do tribunal não permite o encaminhamento direto de peças processuais a desembargadores em férias, a denúncia foi redistribuída e, nesta terça-feira (3), após o retorno às atividades do relator do caso, foi oficialmente entregue.

O caso está em "super sigilo" e, portanto, o MP-RJ não divulgou detalhes da denúncia nem o nome dos outros 15 acusados.

O MP-RJ optou por denunciar o senador no Órgão Especial mesmo com recurso pendente no STF (Supremo Tribunal Federal) contra o foro especial dado ao senador definido pelo TJ-RJ.

A Promotoria ainda tenta reverter a decisão e devolver a avaliação da acusação ao juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal.

O STF não tem previsão para analisar o recurso. Uma ala do tribunal demonstra simpatia à tese que pode beneficiar Flávio. Caso a reclamação do MP-RJ não tenha sucesso, caberá aos 25 desembargadores do Órgão Especial decidir se Flávio deve ou não se tornar réu pelos crimes.

Amigo do presidente há mais de 30 anos, Queiroz é apontado como o responsável pelo recolhimento dos salários de funcionário do antigo gabinete de Flávio e pagamento de despesas pessoais do senador com o dinheiro proveniente da “rachadinha”.

Preso preventivamente em 18 de junho, o PM aposentado cumpre a medida cautelar em regime domiciliar graças a liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF.

Queiroz foi o pivô da investigação iniciada em janeiro de 2018 contra Flávio. Naquele mês, o MP-RJ recebeu um relatório do Coaf apontando a movimentação atípica de R$ 1,2 milhão entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017.

Além do volume movimentado, chamou a atenção a forma com que as operações se davam: depósitos e saques em dinheiro vivo em datas próximas do pagamento de servidores da Assembleia.

O “caso Queiroz” —como passou a ser chamado após a divulgação do relatório do Coaf pelo jornal O Estado de São Paulo em dezembro de 2018— se tornou a principal dor de cabeça da gestão Bolsonaro.

Além da relação estreita com Queiroz, pesa sobre o presidente depósitos de cheques que somam R$ 89 mil na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Essa transação não foi alvo da investigação do MP-RJ, que focou nos atos vinculados a Flávio.

Queiroz também é considerado um elo entre a família Bolsonaro e as milícias do Rio de Janeiro. O PM aposentado era amigo do ex-PM Adriano da Nóbrega, morto numa operação policial na Bahia após ficar um ano foragido sob acusação de comandar um grupo paramilitar na zona oeste da capital.

O miliciano tinha duas familiares empregadas no gabinete de Flávio e contas controladas por ele também foram usadas para repassar dinheiro a Queiroz.

Em áudio revelado pela Folha enviado a um interlocutor, Queiroz classificava as apurações do MP-RJ como "uma pica do tamanho de um cometa".

A investigação, conduzida pelo Gaecc a partir de fevereiro de 2019, apontou que Queiroz recebia depósitos de ao menos 13 ex-assessores de Flávio e sacava os recursos logo em seguida.

A Promotoria identificou depósitos de R$ 2 milhões de 2007 a 2018, período em que o PM aposentado esteve empregado no gabinete de Flávio.

No mesmo intervalo, Queiroz fez saques que somam R$ 2,9 milhões, o que levantou a suspeita entre promotores de que outros funcionários do gabinete não identificados também realizavam transferências ao operador.

Investigadores também indicam a possibilidade de entrega em dinheiro vivo direto a Queiroz, para evitar o registro dos repasses em instituições bancárias.

As medidas cautelares obtidas pelo Ministério Público também mostraram que, de 2007 a 2018, ex-assessores de Flávio na Assembleia do Rio sacaram mais de R$ 7 milhões de suas contas. Em alguns casos, os saques representaram 99% dos respectivos salários.

O Gaecc afirma haver indícios de que toda essa arrecadação teve como destino gastos pessoais do filho do presidente.

Os promotores apontam que o pagamento de escolas dos filhos e o plano de saúde da família do senador foram pagos, na maioria das vezes, com dinheiro vivo --somando mais de R$ 280 mil de 2013 a 2018.

A investigação, contudo, indicou dois modelos de lavagem de dinheiro com valores mais volumosos. O MP-RJ apontou indícios de que o senador utilizou a loja de chocolates de que era sócio para lavar até R$ 1,6 milhões por meio de depósitos em dinheiro vivo.

Segundo a apuração da Promotoria, o volume de pagamentos recebidos pela empresa com recursos em espécie é acima da média praticada neste mercado.

Outro meio de lavagem de dinheiro apontado pelo MP-RJ foi a compra e venda de dois apartamentos entre 2012 e 2014.

Os promotores indicaram ao longo da investigação indícios de que Flávio e sua mulher, Fernanda, pagaram R$ 638 mil em espécie “por fora” ao vendedor dos imóveis —prática que omite dos registros públicos o uso de dinheiro sem origem justificada.

O negócio rendeu, segundo registros em cartório, um lucro de R$ 813 mil em menos de dois anos, como revelou a Folha em janeiro de 2018. Para os promotores, 78% desse rendimento se refere apenas ao branqueamento de valores da “rachadinha”, concretizando a lavagem de dinheiro.

A investigação iniciada em 2018 teve tramitação lenta durante o ano eleitoral. Ela foi acelerada após a eleição, quando Queiroz foi chamado a depor. Ele faltou às quatro oitivas marcadas alegando estar em tratamento para um câncer.

O sigilo bancário e fiscal de Flávio, a mulher, Queiroz e outros cem pessoas físicas e jurídicas foram quebrados em abril de 2019. No fim do ano passado, uma operação de busca e apreensão foi realizada na loja de chocolate de Flávio e em endereços ligados ao PM aposentado.

Em junho, Queiroz foi preso sob suspeita de interferir nas investigações. De acordo com a investigação, ele estava há cerca de um ano em Atibaia (SP) numa casa do advogado Frederick Wassef, que defendia o presidente, Flávio e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Wassef deu versões contraditórias sobre a razão de abrigar Queiroz em sua casa. Em todas elas, afirmou que nem o presidente, nem o senador sabiam do paradeiro do ex-assessor.

A tramitação da investigação também foi prejudicada pela série de recursos interpostos pela defesa do senador a fim de tentar bloquear as apurações.

Em janeiro de 2019, o ministro Luiz Fux, do STF (Supremo Tribunal Federal), interrompeu a investigação sob alegação de que o tribunal deveria avaliar se o senador tinha direito a foro especial na investigação. O recurso foi arquivado duas semanas depois pelo ministro Marco Aurélio, relator do caso.

Em julho, o ministro Dias Toffoli atendeu a outro pedido da defesa do senador para suspender as investigações, sob alegação de que o Coaf entregou informações sobre as transações bancárias dos investigados de forma mais detalhada que o permitido. A medida seria, para os advogados de Flávio, uma forma de violação de sigilo sem autorização judicial.

A suspensão vigorou até dezembro de 2019, quando o Supremo decidiu que o envio de informações do Coaf poderia se dar daquela forma.

Em junho deste ano, após a prisão de Queiroz, o TJ-RJ decidiu que as medidas cautelares contra Flávio não poderiam ter sido autorizadas pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal.

Isso porque, como os fatos se referiam ao período em que o filho do presidente era deputado estadual, toda a apuração deveria ser conduzida com decisões do Órgão Especial, foro de membros da Assembleia de acordo com a Constituição estadual.

O MP-RJ recorreu ao STF, apontando que a decisão contraria decisões da Corte sobre foro especial. A expectativa é que o caso retorne às mãos do juiz Flávio Itabaiana caso o recurso seja deferido pelo Supremo.