Começa a valer a partir desta sexta-feira (3), a lei que criminaliza o abuso de autoridade. Aprovada em agosto do ano passado, a proposta define como abuso de autoridade uma série de situações cometidas por agentes públicos, incluindo juízes e procuradores, e é considerada uma reação da classe política às recentes operações contra corrupção, como a Lava Jato. Originado no Senado em 2017, o texto foi para sanção presidencial após a aprovação da Câmara. O presidente Jair Bolsonaro, pressionado por sua base eleitoral e pelo próprio discurso de campanha anti-corrupção, sancionou o texto com 33 vetos. O Congresso Nacional, no entanto, derrubou 18 desses 33 vetos.A votação representa uma derrota para o governo e um revés para o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, ex-juiz da Lava Jato. A derrubada dos vetos também foi vista como uma reação dos parlamentares ao Supremo Tribunal Federal (STF), que na semana anterior havia autorizado buscas e apreensões em gabinetes ligados ao líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e ao seu filho, o deputado Fernando Filho (DEM-PE), investigados por corrupção.O que diz a Lei de Abuso de Autoridade?Segundo o texto aprovado, as condutas das autoridades serão consideradas crimes caso praticadas com a finalidade específica de prejudicar alguém ou beneficiar a si próprio ou a terceiro, assim como "mero capricho" ou satisfação pessoal. Um dos pontos mais criticados por procuradores e magistrados, a divergência na interpretação da lei ou na avaliação dos fatos e provas - o chamado "crime de hermenêutica" - não será considerada abuso de autoridade. De acordo com a lei, qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer poder da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios estão sujeitos a responder por crimes de abuso de autoridade quando cometidos no exercícios de suas funções. O projeto substitui uma lei de 1965 que tratava do tema.Além da prisão, o projeto considera formas alternativas de penalidades aos crimes de abuso, como obrigação de indenizar o dano causado e a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública de até cinco anos. A inabilitação ou a perda do cargo, no entanto, só serão aplicados em casos de reicidência em crime de abuso de autoridade. Outras penas substitutivas previstas pela lei são: prestação de serviços comunitários, suspensão do exercício do cargo por até seis meses com perda de remuneração.Outro ponto importante da lei é que os crimes de abuso de autoridade serão analisados com base em ação penal pública incondicionada, ou seja, não dependem de queixa do atingido para que a denúncia seja oferecida. O projeto prevê que as penas criminais aplicadas não dependem das sanções de natureza civil ou administrativa. Por outro lado, caso a pessoa seja inocentada na esfera criminal, ela não poderá ser condenada na esfera cível ou administrativa.O projeto altera as regras sobre prisão temporária: atualmente, o preso deverá ser colocado em liberdade imediatamente após cinco dias, prazo fixado para esse tipo de prisão, exceto nos casos em que seja transformada em prisão preventiva. Com a nova regra, o mandado de prisão temporária expedido por um juiz deve conter necessariamente o período da duração da prisão e o dia em que o preso será libertado. O responsável pela custódia deverá colocar imediatamente o preso em liberdade, independentemente de nova ordem da autoridade judicial, exceto se já tiver sido comunicada a prorrogação da prisão temporária ou a decretação da prisão preventiva. Passa a ser a crime de autoridade, passível de prisão de 3 meses a um ano, a violação de direitos e prerrogativas do advogado, tais como a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho e sigilo de comunicação, a comunicação com clientes, a presença de representantes da OAB quando um advogado é preso em flagrante por motivo ligado ao exercício da advocacia.A lei de abuso de autoridade também passa a considerar crime o magistrado que determinar "grampos", escutas ou qualquer outro tipo de interceptação de comunicação com objetivo não autorizado em lei. A punição prevista é entre 2 e 4 anos de reclusão, além de multa. Quais foram os artigos vetados por Bolsonaro e retomados pelos parlamentares?Vetos derrubados (artigos mantidos na lei)Advogados. O Congresso acatou o pedido feito pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e derrubou o veto ao artigo que tratava sobre atuação dos advogados. O trecho mantido pelos parlamentares torna crime, punível com até um ano de detenção, a violação de prerrogativas de advogados (como poder falar com seu cliente em particular, ser atendido pelo magistrado e ter acesso à íntegra dos processos). A pena é de até um ano de detenção.Prisão. O Congresso derrubou o veto e manteve a punição a juízes que determinem prisão ou outra medida que restrinja a liberdade, como recolhimento noturno, em desconformidade com a lei. A pena é de 1 a 4 anos de detenção. Publicidade. Outra situação que agora pode ser punida até com prisão é se o responsável pela investigação atribuir culpa ao investigado antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação. Isso vale até mesmo por postagem em rede social. A pena vai de seis meses a dois anos de prisão.Liberdade. Também pode ser punido o juiz que não substituir a prisão preventiva por medida cautelar ou não conceder liberdade provisória quando manifestamente cabível na legislação.Prova contra si mesmo. O item prevê punir com detenção de um a quatro anos, mais multa, o agente público que obrigar o preso a produzir prova contra a si mesmo ou contra terceiro.Identificação. Estabelece pena de seis meses a dois anos de detenção para a autoridade que deixar de se identificar ou identificar-se falsamente durante a prisão ou interrogatório.Os vetos mantidos (artigos retirados da lei)Algemas. O dispositivo previa que um agente público, caso submetesse um preso ao uso de algemas quando não houvesse resistência à prisão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, poderia ser punido com detenção de até dois anos.Prisão. Foi mantido o veto ao trecho que punia policiais que executem a captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito ou sem ordem escrita de autoridade judiciária.Exposição. Também não entrou na lei o artigo que previa pena de até quatro anos de prisão para quem executar mandado de busca e apreensão mobilizando veículos, pessoal ou armamento de forma ostensiva e desproporcional para expor o investigado a situação de vexame.Filmagem. Outro veto mantido foi ao dispositivo que punia aqueles que permitissem a fotografia e filmagem de preso, investigado, indiciado ou vítima, sem seu consentimento ou com autorização obtida mediante constrangimento ilegal. A pena era de seis meses a dois anos de prisão.Omissão. O item previa pena de detenção de seis meses a dois anos para quem, com finalidade de prejudicar investigação, omite dado ou informação sobre fato juridicamente relevante e não sigiloso.Manifestações. Outro ponto que saiu da lei foi o que previa detenção de três meses a um ano para quem coibir, dificultar ou impedir, por qualquer meio, sem justa causa, a reunião, a associação ou o agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo.Outro projeto de abuso de autoridadeApós quase dois anos parado, o Senado aprovou projeto semelhante em junho do ano passado. O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, promoveu mudanças no texto que veio da Câmara dos Deputados e que era duramente criticado por associações da classe de magistrados e procuradores.O projeto, que apesar de ter no abuso de autoridade seu principal tema apresentava um pacote de medidas anticorrupção, originalmente apresentado à Câmara por iniciativa popular e defendido pelo Ministério Público, também transforma em crime o caixa dois eleitoral e a compra de votos. Aumenta, ainda, a pena para o crime de corrupção, tornando-o hediondo em alguns casos.A tramitação da criminalização do abuso de autoridade ganhou velocidade em meio ao vazamento dos supostos diálogos entre o então juiz e hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e procuradores da Lava Jato, entre eles o chefe da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol. O conteúdo das supostas mensagens sugerem que o ex-juiz orientava os procuradores durante a operação, o que fere o princípio da imparcialidade e da equidistância entre as partes - acusação e defesa - do juiz. Como surgiu a lei de abuso de autoridade?Em 2016, foi apresentado ao Congresso um projeto de lei idealizado pelo Ministério Público Federal e apresentado por meio de iniciativa popular que ficou conhecido como “10 medidas contra a corrupção”. O pacote recebeu mais de dois milhões de assinaturas de apoio. Os deputados, no entanto, desconfiguraram o texto - das dez medidas, apenas quatro foram mantidas - e incluíram nele a criminalização do abuso de autoridade de juízes e membros do Ministério Público, o que foi visto como uma reação da classe política à Lava Jato. Aprovado na Câmara no final de 2016, o projeto ficou parado no Senado até este ano. À época, a iniciativa foi alvo de críticas associações de magistrados e de procuradores. As principais reclamações foram que o texto previa crimes de abuso de autoridade apenas para magistrados e membros do Ministério Público e deixava de fora os outros agentes públicos. Associações de classe também reclamavam que a lei trazia tipos penais imprecisos como, por exemplo, considerar crime “proceder de modo incompatível com a honra e o decoro de suas funções”. Segundo juízes e procuradores, isso implicaria em uma ausência de segurança jurídica à sua atuação. ReaçõesO coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, afirmou que o projeto aprovado tem “pegadinhas” e pode levar a ataques a investigadores. “Somos, sim, a favor de punição adequada do crime de abuso de autoridade, consistente, como aquela prevista no projeto de lei apresentado em 2017 no Senado”, disse, em referência a outro projeto aprovado na Casa, de relatoria do então senador Roberto Requião, mas que parou na Câmara.Segundo o presidente da Ajufe, Fernando Marcelo Mendes, as alterações feitas pelo senador Rodrigo Pacheco melhoraram o texto da Câmara, principalmente por dois pontos: a necessidade de comprovação de dolo específico e a retirada do crime de hermenêutica. No entanto, ressalta que a associação é crítica ao projeto. “Criticamos o porquê disso estar sendo discutido nesse momento e por que está sendo discutido esse projeto, já que existe o projeto do Requião, que hoje está na Câmara”, diz. Segundo Mendes, esse outro projeto - também citado por Dallagnol - aborda pontos importantes e não atinge só juízes e promotores, mas todas as autoridades públicas que podem de alguma maneira cometer violações.Um ponto criticado pela Ajufe é o que criminaliza as violações das prerrogativas e direitos dos advogados. Para Mendes, isso gera um “privilégio” a esses profissionais. “Só advogado terá uma prerrogativa que, quando violada, configura crime e só o advogado, quando se sentir com sua prerrogativa violada, poderá mover uma ação penal contra aquele que ele entender que violou algum direito seu”, protesta.“Para nós, isso concede aos advogados um poder e uma proteção que não tem parâmetro ou equivalente dentro do modelo constitucional brasileiro”, afirma o presidente da Ajufe, que diz que a associação continuará apresentando suas reclamações e reivindicações durante a tramitação do projeto na Câmara. “Certamente nós vamos levar nossas preocupações, nossas ponderações para ver se a gente consegue na Câmara alterar isso de alguma maneira e impedir que essas alterações sejam feitas da maneira como foram apresentadas.”OAB elogiaJá a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) elogiou, em nota, a aprovação do projeto pelo Senado. Segundo o órgão, o texto “representa um grande avanço para o combate à corrupção e para a atualização do ordenamento jurídico brasileiro”. “A OAB reconhece, assim, o importante trabalho realizado pelos senadores e senadoras, que respondem, com o projeto aprovado, ao grande anseio da sociedade brasileira por mais justiça e mais eficiência no combate à corrupção”, afirma o comunicado. O advogado e ex-secretário de Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos Jr., considera o projeto um avanço pelo fato da lei atualmente em vigor ser muito antiga, de 1965. “A lei atual tem tipos amplos, penas baixas e pouca aplicação, nunca foi considerada uma lei eficiente para punir o abuso de autoridade”, afirma. No entanto, ele pondera que o novo projeto também não é muito específico sobre o que pode ser enquadrado como abuso. “O juiz é neutro e imparcial, mas no momento da decisão ele rompe a neutralidade, afirma com convicção e veemência a culpa ou absolvição de determinada pessoa e vai buscar nos autos as provas para tal. Temo um pouco o trecho que diz que atuar com evidente motivação político-partidária possa levar a alguma injustiça”, afirma. Segundo ele, o estabelecimento do dolo específico equilibra um pouco isso e diminui as chances de haver decisões subjetivas sobre o abuso de algum juiz ou promotor. Santos também elogia a criminalização da violação das prerrogativas dos advogados - ponto criticado por juízes e promotores. “Hoje em dia há um desequilíbrio entre a posição do advogado e do Ministério Público, a criminalização da violação dos advogados recupera um pouco esse equilíbrio. A interpretação dos juízes sobre a lei processual penal vem sendo muito alterada, embora a lei permaneça a mesma”, diz.