Kayla Pachêco Nunes
Professora da rede estadual do Tocantins no Bico do Papagaio e mestranda pelo ProfLetras/UFT – Câmpus Araguaína
 
Em 1997, o cineasta James Cameron lançava o milionário “Titanic”. O longa épico, que recebeu 14 indicações e 11 prêmios do Oscar, narra o romance fictício entre dois jovens durante a reprodução do naufrágio real ocorrido em 1912. 
 
Campeão de bilheteria, o sucesso do filme ainda repercute na internet até hoje. Não apenas pelas cenas de romance e drama, mas pelos memes que os internautas compartilham nas redes. Entre os desdobramentos cômicos, o da orquestra tocando enquanto o navio era consumido pelas águas geladas do Atlântico Norte é um dos mais famosos. O gesto do maestro e seus músicos figura uma tentativa de dizer “já que vamos todos morrer, não podemos parar de entreter o público”. 
 
Observando discussões sobre a volta à as aulas antes da imunização em massa contra a Covid-19, justamente essa cena da orquestra do Titanic veio à tona. Entre os tantos desdobramentos negativos da pandemia da Covid-19, banalizados pelo discurso de uma minoria privilegiada, o mais recente e talvez mais perigoso tem sido o de garantir o ano letivo de 2020. Numa típica demonstração da violência simbólica estudada por Bourdieu.
 
De um lado, instituições da rede privada numa corrida desesperada para manter seu padrão de lucro assumindo novos modismos linguísticos com as famosas aulas “síncronas e assíncronas”. Na luta contra a inadimplência, divulgam uma enxurrada de informações para tentar mostrar que as aulas remotas estão acontecendo de vento em popa. 
 
Na rede pública não tem sido diferente. Para tentar mostrar que está tudo bem, também utilizam os empréstimos linguísticos para a encenação midiática.  Nos grandes centros, aulas pela internet, TV e rádio. Nos rincões mais distantes, delivery e drive thru de blocos de atividades semanais.
 
No meio desse discurso falacioso de que está e que vai ficar tudo bem, com aula virtual ou presencial, assim como os trabalhadores da saúde em grande parte adoecidos por serem tratados como soldados num campo de batalha, já quase sem munições, estão os profissionais da educação. 
 
Sem formação específica sobre o uso dos recursos digitais, sem estrutura física ou qualquer tipo de apoio logístico de seus empregadores, estão sendo tratados como os músicos do Titanic, mesmo diante do caos, não podem parar o show. Com jornada prolongada, os profissionais que sempre amargaram a desvalorização profissional, agora tiveram que se tornar youtubers e descobrir sozinhos seus superpoderes de lutar contra a evasão, contra as dificuldades de aprendizagem na educação básica e até contra o Coronavírus, indo a campo, atrás do aluno com os blocos de atividades.
 
Não podemos esquecer das famílias. Independente de condição social, a maioria dos lares está sofrendo com a nova missão de ensinar conteúdos que foram antes aprendidos. Quando consultados sobre o retorno das crianças e jovens às escolas, sentem-se inseguros diante dos números ainda alarmantes de contagiados e mortos pela pandemia que se prolonga há mais de 120 dias.
Não bastasse todo esse cenário de nadar contra a correnteza, além de incentivar a competitividade entre as escolas com relatos de experiência exitosos em meio ao caos sanitário que vivenciamos com o famoso “Prêmio gestão”, essa semana a rede estadual do Tocantins divulgou mais uma ação milagrosa aos estudantes e professores. 
 
Justamente quando muitas comunidades estão lutando para manter-se vivas e minimamente alimentadas, com o lema “A palavra convence, mas o exemplo arrasta”, a Seduc está incentivando os alunos a participarem do curso “Crie o Impossível 2020”. Formação 100% on-line, portanto excludente se levarmos em consideração que boa parte dos alunos não tem acesso à internet, propõe a criação de projetos transformadores para suas escolas e comunidades” por meio de uma plataforma virtual. 
 
É como se estivéssemos num daqueles seriados de super-heróis. Quando está tudo prestes a um colapso, os personagens revigoram-se e com seus superpoderes, salvam o planeta! Mas não podemos contar com os truques da ficção. 
 
Na vida real, estamos todos no mesmo oceano, porém assim como no Titanic, os botes salva-vidas são exclusividade de um grupo seleto. Uma minoria que nega a realidade e que prega a continuidade do espetáculo. A sensação é justamente essa, salve-se quem puder porque precisamos salvar o ano letivo.