Patrícia Orfila
é doutora em História Social e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFT. É autora de “Modernidades Tardias no Cerrado. Arquitetura e Urbanismo na Formação de Palmas”.
 
O cotidiano da cidade capitalista é veloz, mesmo na pandemia, um amálgama de encontros e desencontros, modos de viver e palco de confrontos políticos e ideológicos, movidos pelo neoliberalismo econômico. Entretanto, para que essa cidade seja eficiente, alguém precisa varrer as ruas, limpar as casas, fazer a manutenção dos jardins, carregar o lixo e servir o café.
 
Para a especialista em estudos pós-coloniais Françoise Vergès e autora do livro “Um Feminismo Decolonial”, são as mulheres negras que “abrem” a cidade todos os dias, limpam os espaços para que o patriarcado e o capitalismo funcionem para benefício de alguns. A maioria do comércio e dos serviços que utilizamos diariamente funcionam ancorados numa estrutura racializada e marcada pelo gênero.
 
Em Palmas não é diferente, milhares de mulheres se deslocam da periferia para o centro da cidade, perdendo horas do seu dia apenas no deslocamento, antes mesmo do sol nascer, para garantir que os usuários dos espaços de consumo sejam recebidos em locais limpos, seguros e agradáveis.
 
Empregadas, diaristas e faxineiras cuidam da limpeza das casas, das crianças e dos idosos, para que seus empregadores possam trabalhar com tranquilidade e manter os seus corpos limpos e saudáveis, frequentando as academias de ginástica, salões de beleza, bares, clubes e restaurantes, sendo estes os plenos beneficiários do direito à cidade.
 
Ao final do dia, as proprietárias desses corpos invisíveis e exauridos, que exercem funções que prejudicam sua saúde, disputam um lugar no transporte público, onde passam longas horas até retornarem às suas casas. Além da precarização de seus direitos, por exercerem um trabalho considerado não qualificado, tem baixa remuneração e, conforme demonstram as estatísticas nacionais, ainda estão entre as maiores vítimas de assédio e violência sexual, tanto nos locais de trabalho quanto no espaço público.
 
Com a epidemia de Covid-19 a realidade das mulheres racializadas (a autora emprega o termo para designar todas as mulheres que a colonialidade fabrica como “outras”, para discriminar, excluir, explorar, desprezar) apenas se agravou, tendo em vista que não estão inseridas nas políticas de confinamento, que abrangem somente uma parcela privilegiada da sociedade.
 
Logo, estão mais vulneráveis à contaminação, muitas trabalhando sem proteção, deixando seus filhos sozinhos, já que as escolas estão fechadas. Soma-se ao pacote de crueldade, o aumento da violência doméstica durante a pandemia.
 
Como podem constatar, raça, gênero e classe são categorias de análise indissociáveis e devem ser consideradas na sua interseccionalidade, se quisermos compreender de forma mais substantiva a lógica neoliberal. As mulheres negras são a base da estrutura econômica e a superexploração do seu trabalho garantem o funcionamento da engrenagem da estrutura capitalista. Cabe destacar que, não são e nunca foram prioridade nas pautas das políticas públicas, o que Vergè define como “o paradoxo aparente das vidas necessárias e invisibilizadas”.
 
Como estamos em período pré-eleitoral, é bom frisar que, debates sobre políticas públicas, que não assumam pautas antirracistas e anticapitalistas, ou seja, que não questionem o sistema de opressão racial marcada pelo gênero, que desconsiderem as condições do trabalho doméstico e a maternidade nessa estrutura patriarcal de superexploração estão fadados à repetição de padrões ou sistemas fechados de decisões que já deram provas suficientes de seu fracasso.
 
Quem limpa a cidade para que o patriarcado e o capitalismo continuem exercendo pleno domínio, permanece invisível e é essa dialética atroz de invisibilização que garante a continuidade da exploração. Quem limpa e cuida da cidade planejada tem gênero, raça e classe social, embora muitos de nós queiramos fechar os olhos para essa realidade quando somos servidos cotidianamente no conforto dos nossos privilégios.