Eduardo Simões
Professor doutor em Filosofia

Tenho visto nas diversas manifestações acaloradas sobre política o uso de muitos termos sobre os quais vejo que as pessoas não têm qualquer conhecimento do significado e da aplicação. Recentemente, vi uma manifestante empunhando um cartaz que pedia pela “criminalização do comunismo”. Quando questionada sobre os seus conhecimentos acerca do objeto do seu protesto, titubeando, ela responde que acha que “a queda do comunismo será algo bom para o Brasil”. Mas, a queda do comunismo onde? Que comunismo? O que você entende pelo termo comunismo? Nem ela, nem a maioria das pessoas as quais vejo manifestar nas redes sociais sobre esse tipo de tema, sabe do que se trata. 

Contudo, não é só sobre comunismo que vejo pessoas se manifestarem sem nada saber. Há uma série de absurdos sobre temas como nazismo, fascismo, comunismo, ideologia, racismo, feminismo, pós-verdade, etc. que são frutos da completa ignorância de um país incapaz de educar com qualidade o seu povo. Diante desse fato, sinto-me na obrigação de aproveitar esse espaço, que atinge um público muito mais amplo do que aquele de minhas salas de aula, para falar um pouco sobre esses temas. Hoje tratarei do tema ideologia. Há uma longa história por trás desse termo, mas me deterei naquilo que parece ser o essencial.

Quem não se lembra do fato recente do Presidente da República que, ao tomar posse no cargo, disse que formaria a sua equipe de governo “sem o viés ideológico”? Ou, então, do Cazuza cantando, em 1988, “ideologia, eu quero uma pra viver”? Mas, o que é essa tal ideologia sobre a qual tanto se fala? Etimologicamente, a palavra ideologia deriva dos termos gregos ideia (forma, aparência, imagem, etc.) e logos (estudo, razão, etc.), e foi utilizada pela primeira vez no livro Eléments d’Idéologie do francês Destutt de Tracy, em 1801, com um sentido mais amplo de “ciência das ideias” ou “teoria das faculdades sensíveis responsáveis pela formação das nossas ideias”. Mas, é com Karl Marx, que o termo ideologia ganhará outro sentido e se fixará a partir de então. Em termo gerais, nesse teórico, ideologia é um “conjunto de ideias que pretendem um ocultamento da realidade com a finalidade de alienar os indivíduos” – mas, deixemos para tratar disso daqui a pouco. Há, ainda, uma terceira definição e essa é dada por Auguste Comte em seu livro Curso de Filosofia Positiva. Nesse livro, além de reforçar o emprego do termo ideologia por de Tracy, Comte também o usa para designar “um conjunto de ideias de uma época, tanto como ‘opinião geral’, quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores daquela época”. É justamente esse terceiro significado de ideologia que Cazuza utiliza em sua música. Quanto ele canta que quer uma “ideologia pra viver”, está dizendo que precisa de um “ideário”, de conjunto das ideias, de uma doutrina, de um movimento, sei lá, de um partido político. Afinal, “meus heróis morreram de overdose. E, meus inimigos estão no poder”. Os símbolos e as pessoas que aparecem no videoclipe da música apontam para essas pretensões de sentido.

Mas, conforme foi dito, foi o sentido cunhado por Marx que prevaleceu na literatura especializada. Ideologia, nesse caso, funciona como uma forma de conhecimento ilusório que leva ao mascaramento da realidade e dos conflitos sociais. Trata-se de um instrumento de dominação que tem influência marcante nos jogos de poder e na manutenção de privilégios, e que modela a maneira de pensar e de agir dos indivíduos na sociedade. O sentido dado por Comte e utilizado por Cazuza, pode sim vir associado a esse tipo de ideologia, uma vez que tais “ideários” (sejam eles religiosos, políticos, econômicos, sociais), na maioria das vezes, estão carregados da intenção explícita de domínio, sob o véu do ocultamento e da submissão de um povo aos preceitos dessa ideologia, geralmente de feição burguesa. Isso acontece, por exemplo, quando o crente é submetido a pensar e agir de determinada maneira, visto que a sua ação é justificada pela “vontade de Deus”, expressa na pregação do líder religioso e fundamentada na letra de um Livro Sagrado; quando o eleitor é instigado a votar e defender um determinado partido ou corrente ideológica em nome do “amor à pátria, à família e à religião”; quando o trabalhador é compelido a “bater as metas”, enriquecendo ainda mais o patrão, em troca daquele retrato todo sorridente na parede da empresa com a estimulante subscrição: “funcionário do mês”; quando é sedimentado na cabeça do sujeito o caráter de normalidade das desigualdades sociais – “somos ricos ou pobres porque Deus assim o quis” – ou a aceitação da “verdade” do discurso da meritocracia que nunca leva em conta os favorecimentos de berço. Enfim, quando ele é alienado, subjugado, explorado e enganado por uma ideologia sem sequer perceber.

Esse tipo de ideologia, que se processa como um sistema de regras, ideias ou representações de caráter subliminar, não pode ser visto como um processo subjetivo inconsciente e involuntário, produzido pelas condições de existência social do indivíduo. Trata-se, na verdade, de uma ação intencional – venha de onde vier – e que tem o objetivo de alienar o seu público-alvo sem qualquer tipo de escrúpulo. Tal ideologia se caracteriza por: prescrever normas de conduta para a “manutenção da ordem social” como, por exemplo, “combatam o comunismo, pois ele é um inimigo da família”; instituir representações sociais através de imagens que impactam diretamente o imaginário popular e pelas quais se deve lutar, como as de: “pátria amada”, “povo de Deus”, “nação dos escolhidos”, “terra santa”; generalizar o particular, atribuindo características da parte ao todo. Nesse caso, o preceito “todos somos iguais perante a lei” é nada mais do que uma generalização formal que nunca funcionou na prática; apresentar um discurso lacunar sustentado em meias verdades, a exemplo de: “a educação é um direito de todos e dever do Estado”. Todos quem?; explicar a realidade do ponto de vista de quem domina. Nesse sentido, as posições de um Presidente da República, de um líder religioso, de uma autoridade do judiciário, tendem não serem questionadas por constituir palavra última de autoridade competente; inverter a realidade de modo a enfatizar os efeitos e ignorar as causas. Dessa forma, o problema do racismo e da exclusão social da população negra no Brasil, por exemplo, tendem a ser rotulados como “mi-mi-mi” ou como “reclamação injustificada”. As verdadeiras causas, que são históricas e que retroagem aos tempos coloniais, são ignoradas pelos detentores do poder; promover a alienação social, instalando o conformismo e a indiferença ante às próprias condições de vida; reificar (ou coisificar) as coisas inertes como se elas tivessem vida própria. Por exemplo, “o Estado aprovou a Lei de Segurança Nacional”. Mas, quem é o Estado? De onde emana a autoridade desse ente abstrato? Quais os interesses estão por trás da “coisificação” da ideia original de Estado?; naturalizar as ações humanas, como se determinadas eventos fossem absolutamente normais. “Se o destino final de todos é a morte. Então, é natural que a Presidência da República não se abale com a quantidade de vítimas da COVID-19 no Brasil já que todos iremos morrer um dia!”; homogeneizar as diferenças entre as classes sociais, imprimindo o selo de igualdade onde historicamente está fundado o caráter de divisão em razão de antagonismos. Nesse sentido, a ideologia de que o progresso material é fruto do trabalho de todos é uma grande mentira. Há os que, de fato, trabalham e os que gozam da mais-valia produzida sobre a força do trabalho alheio e sobre uso dos meios de produção; ocultar o verdadeiro conhecimento da realidade, mascarando a existência das contradições na convivência social. O que importa é deixar transparecer que tudo está caminhando muito bem! Enquanto as pessoas não dão conta do domínio e não se incomodam com as diferenças sociais, fica mais fácil a manutenção do jugo!

Estas são as principais características da ideologia. Vejo que está mais do que constatado, pela história e pelo cotidiano, os perigos que ela representa. Se você não está convencido da existência e dos efeitos dela, certamente é porque ela já cristalizou de tal forma em sua mente que você já não consegue mais pensar por conta própria. Para resolver esse problema, caso estejas aberto a isso, penso que Jean-Paul Sartre tem um bom conselho: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”.