O dia 27 de fevereiro de 1994 é histórico para o povo brasileiro, pois foi a partir dessa data que o Brasil, por meio do Plano Real, venceu de fato algo que se tornava um empecilho ao desenvolvimento do país: a inflação. Quando se fala de inflação, logo vem à memória o derretimento do dinheiro ante a contínua elevação de preços.

Não quero debater, neste espaço, o lado que todo mundo vê da montanha. Meu objetivo, nestes escritos, é convidar você, leitor, a enxergar o outro lado da montanha que poucos conseguem ver:  a geração de esqueletos (geralmente, dívidas oriundas da corrupção) implementada no setor de energia elétrica. O Plano Real trouxe à luz do Sol os esqueletos gerados nos subterrâneos do poder. Certamente, a luta por desmontar mecanismos se deu nas várias estatais que integram o leviatã Estado brasileiro. Da conta petróleo no setor petrolífero à conta de resultados a compensar (CRC) no setor produtor de energia elétrica. 

Posto isso, atenho-me a comentar o que significou o desmonte da CRC para as empresas do setor de energia elétrica, como também essa conta se tornou um instrumento de combate à corrupção no interior do setor elétrico brasileiro.
Para isso, imaginemos uma cena entre um corrupto e um corruptor, na calada de um gabinete, decidindo a construção de uma obra pública justificada pelo político, para a plateia, como essencial ao “desenvolvimento do estado x”.

Do  corrupto para o coruptor:  ̶  Os estudos técnicos apontam que, para atender à demanda por energia elétrica do município de Suazilândia, a concessionária terá de investir o que efetivamente a demanda requer: 100 quilowatts.
Responde o corruptor:  ̶  O quê!? Só isso!? O compromisso do governo conosco é de investir 1.000 quilowatts. Não custa lembrar que nossa empresa contribui com cifras consideráveis para a eleição do governador.

Ante o argumento, o martelo foi batido; e a obra, construída. Todo mundo ganhou o seu: a empresa corruptora, o dirigente corrupto colocado na direção da estatal e os funcionários umbilicalmente ligados a quem o nomeou. Quem só perdeu foi a população, pois foi esta que pagou (via tarifa) o custo ocioso dos 900 quilowatts devidamente contabilizados na conta de resultados a compensar. Este mundo irreal foi desmontado pelo Plano Real. Para isso, medidas de combate à corrupção foram tomadas. Entre essas medidas estava a extinção da CRC. Além disso, o Plano Real limitou a remuneração dos investimentos pelo que de fato fosse usado (100 quilowatts), e não pelo total que fora construído (1.000 quilowatts). Dito de outro modo: os investimentos passaram a ser remunerados pela sua eficiência de uso, e não pelo seu total.

Resultado: o esqueleto oriundo dos 900Kilowatts, não sendo remunerado, desequilibrou a empresa estatal pelo fato de a receita real oriunda do uso efetivo ser substancialmente menor do que aquela originada pelo sobreinvestimento efetuado pela empresa corrupta nos templos de inflação elevada. É a partir daí que inúmeras rentáveis empresas do setor elétrico entram em “crise”. A “crise” repentina aparece imediatamente após a extinção dessa ilha de ineficiência alimentada pela conta de resultados a compensar.

Posto isso, falemos a respeito de “O Capitalismo e a Captura do Setor Elétrico na Periferia”. De uma maneira inovadora, este livro denuncia o modus operandi dos donos do poder — empreiteiros, consultores, prestadores de serviço em geral — que agem nas empresas públicas de energia elétrica da periferia do capitalismo nacional, capturando-as para servir a seus próprios interesses, e não aos da sociedade como um todo.

Enfim: eu vos convido para, juntos, imergirmos no subterrâneo do poder no qual tudo acontece, na escuridão léguas distantes da luz do Sol: de contratos direcionados, sobreinvestimentos, consultores contratados a peso de ouro...  No palco dessa escuridão, os ganhos dos donos do poder foram decisivos para a falência das empresas estatais de energia elétrica. 
 
Salatiel Soares Correia
é Engenheiro, Administrador de Empresas,Mestre em Energia pela Unicamp.É autor, entre outros livros, de  O Capitalismo Mundial e a Captura do Setor Elétrico na Periferia.