Adriana Kortlandt
é psicóloga clínica e autora de O Refúgio das Borboletas.
 
Aquilo que compõe nossa rotina e que rouba o tempo de estarmos conosco, deixou ou está deixando de existir rapidamente. Estamos confinados. Uma condenação?
 
O vírus é apenas um fato biológico. A esteira de consequências sistêmicas que estamos começando a sentir, que vão desde o agravamento da crise econômica até o simples ato de estarmos diante de nós mesmos, este é o “momento agora” que cada um de nós tem diante de si, sem rota de fuga no shopping ou no chopinho da esquina. Aquilo que nos sugava cada segundo até a semana passada não suga mais, a casa virou um casulo. Há pessoas que não conseguem ficar em casa sozinhas, outras, não conseguem ficar em casa acompanhadas. Há pessoas que nem têm casa. Solidão.
 
Sob condições muito, muito piores do que a nossa Anne Frank ficou dois anos confinada em um sótão, e nos deixou um diário onde narra o desafio que agora também poderia ser nosso: o de transformar solidão, medo, raiva e incerteza em solitude, momento de reflexão e aprendizado sobre si mesmo e o mundo.
 
Um bichinho microscópico está confinando o maior predador deste planeta em seu sótão. O fenômeno biológico é um só, os sótãos... estes podem variar. Solidão e solitude.
 
Transformar dificuldade em oportunidade é o segredo da ostra fazendo a pérola. Em meu consultório, agora virtual, o denominador comum das conversas, exercícios e propostas de reflexão se chama: atitude interna. Concordamos que existe solidão a dois, solidão em massa, que há um hiperconsumo desenfreado, que os recursos de Gaia não acompanham a nossa voracidade de ter, e que algo deve ser feito, menos plástico, etc.
 
Estar mental e emocionalmente em casa, fazendo coisas simples e prestando atenção apenas em informações de instituições competentes para comunicar sobre o vírus, tipo a Fiocruz, é o que que decidi fazer, disse-me uma paciente. Agindo assim ela definiu sua moldura mental e emocional para a ideia que a ameaçava, a de se perder na imensidão de uma rotina diferente e não determinada por fatores externos, tipo trabalho, horário, leva e traz das crianças, e coisas e tais. Fiz uma planilha de gastos, fiz cortes. Acho que foi a primeira vez que eu realmente parei para fazer uma contabilidade decente, entrada e saída de grana. Levei um susto! Não vou mais à casa dos meus pais, vai que eu contamino eles? Está tudo mega apertado, mas é o que é. Já passei por cada uma, vou passar por mais esta. O negócio é não embarcar no desespero, parar respirar, relaxar, e estar ativa...  Disse-me outro paciente, em seu caminho de lida e ganho de controle sobre sua ansiedade.
 
Aprender a lidar com a solitude pode ser a grande oportunidade de tratar um vício muito conhecido de nossa época, o de ficar correndo como um hamster na rodinha, simplesmente porque um dia entramos nela, ou fomos empurrados para ela, tanto faz.
 
Se isso ocorrer – a dádiva de giramos o caleidoscópio, transformando solidão em solitude – há a esperança de que o vivido tenha sido a travessia de um deserto, rumo à terra prometida, que eu chamo de ganho de consciência, construção de sentido até mesmo para outras crises, que certamente virão. Senão, corro o risco de voltar a ser o hamsterzinho atolado, tão logo o confinamento acabe.
 
Solitude é um ato de coragem. E coragem é a capacidade que eu tenho de levar meu medo para uma ação, diz Aristóteles.
 
Eu resolvi conversar comigo, sem ninguém me olhando, dando nota. Aí, entendi que eu posso ser uma companhia para mim. Acho que isso se chama colocar o adulto no volante.