Após a grande depressão do início do século XX provocada pela Gripe Espanhola e colapso da economia, em 1932 o escritor inglês Aldous Huxley lançava o romance “Admirável mundo novo”. Literatura de ficção que traz em seu enredo o conflito entre o conformismo da grande massa e a mudança social pela qual lutavam os excluídos.
 
No contexto da obra futurista, Huxley apresenta uma sociedade controlada pelo Estado em um governo totalitário através do poder científico, exercido perante uma comunidade dividida em castas, estas mais valorizadas e reconhecidas se compostas por seres inteligentes, bonitos e de bom porte físico. Em contrapartida, os grupos inferiores tinham adjetivos diretamente contrários, e por isso, eram relegados à própria sorte. A morte era vista como algo bonito, como não existia sentimentos, não existia tristeza relacionada à morte. Como toda boa narrativa, o conflito ocorre quando o protagonista, por não se encaixar nos padrões de sua casta, conhece um mundo novo, o dos selvagens, e descobre algumas das tantas corrupções da sociedade “perfeita” da qual fazia parte. Na tentativa de se vingar daqueles que sempre o discriminaram, leva um filho bastardo de volta àquele grupo, mas a revolução que sonharam não aconteceu. 
 
Embora de caráter ficcional, ‘Admirável mundo novo’ se assemelha à vida real justamente pelos vícios e mazelas que apresenta. Assim como Huxley desenhou em sua narrativa, em nosso mundo, as drogas servem de fuga da realidade; o preconceito contra aqueles que não atendem aos padrões impostos pelo sistema é muito violento; e os que lutam por mudança no status quo da sociedade, comumente são tidos como rebeldes ou loucos, porque a Violência Simbólica de quem está no controle, por sua vez, “mostra seu poder e seus argumentos, onde tudo que é feito é para o bem da humanidade”, gerando assim o conformismo da maioria. De forma irônica, a vida real se difere dessa ficção justamente porque aqui existem pestes, doenças e as pessoas envelhecem. Também há a negação da ciência por boa parte do grupo. 
 
Quase um século após essa publicação, vivemos novamente um quase admirável mundo novo. Assolados por uma pandemia que já perdura cerca de 300 dias, e contabiliza quase um milhão de mortos em todo o globo, vivemos numa sociedade totalmente apática para o “Mundo novo” que desenhou nos últimos meses. Assim como na história de Huxley, a morte parece que não assusta nem sensibiliza mais, tornou-se comum ou mesmo natural. Os preconceitos contra os diferentes, as minorias, parecem ter se tornado ainda mais explícitos. E o conformismo com o Estado Totalitário representa a sensação de anestesia social da maioria.
 
É como se esse novo mundo no qual entramos nesta virada de década exigisse de nós outras formas de ser e conviver, porém ainda estamos repetindo as velhas práticas de uma sociedade que se diz moderna, mas que ainda amarga velhos hábitos. A alta de preços dos produtos essenciais; o caos sanitário diante de um sistema de saúde sucateado; os escândalos de corrupção com verbas que deveriam ser aplicadas no combate ao vírus; o aumento da fome e o alargamento da desigualdade social; parecem não incomodar à grande massa que é controlada pela violência velada da elite, aplaudida de pé a cada atrocidade proferida ou realizada. 
 
O mais assustador tem sido o egocentrismo de uma gama de indivíduos desse corpus social. Bem longe de enxergamos o fim da crise sanitária da Covid-19 no horizonte, incontáveis são os exemplos de comportamentos que desprezam o perigo que todos enfrentamos, simplesmente “porque não aguentam mais ficar em casa”. Centros comerciais, praias, bares, e casas noturnas lotados diariamente denunciam esse descaso coletivo com uma doença para a qual ainda não há vacina disponível. 
 
Aos que não se encaixam nesse conjunto de repetição de velhas práticas, resta o adoecimento emocional de sentir-se estranho, diferente, por tentar fazer sua parte e não contribuir com uma nova explosão de doentes e mortos. Talvez como na obra de Huxley, a essa minoria, restaria viver com os “selvagens”.