Os poucos leitores que esse texto deve encontrar são meus amigos e devem saber dessa história, que relato quando posso. Numa dessas milhares de entrevistas de balanço da carreira, Milton Nascimento “Bituca” contou de como entendeu mesmo que passava por um quadro grave depressivo: ele simplesmente não sentia mais vontade de cantar. Fiquei imaginando aquilo encarnado num artista-cantor da dimensão dele.

Eu já o amava, mas naquela altura decidir pesquisar e conhecer a obra dele não costumeira. Nisso criei uma lógica boa, que me valeu namoros e umas conquistas, que não era exatamente o foco, mas veio a calhar. A lógica: todos os dias dali em diante eu escutaria Milton, se pudesse, algo que não conhecia ou não sabia de memória. E postava nas redes: “Você já escutou Milton hoje?”. Não postava todo dia, mas não falhava tanto. 

Descobri discos e gravações que certamente músicos aficionados, como o baixista mestre na minha geração, Diego Britto, sabiam e fãs como o professor e ex-sogro Adão Francisco também, algo como o lado B, nem tão B assim, pois difícil pela forte presença musical na vida nacional. 

Vi o Milton passar por tantas fases e sempre fui um devoto distante e respeitoso. Fui a três shows e meio. Meio, explico. Um desses, queria tanto estar, era na minha cidade natal. O amor nutrido naquela altura, entre mim e a Senhora A, fez com que fosse transportado pra’quele espetáculo por vídeos e áudios ao vivo e tais. O vi magro, gordo, velho, novo, com tranças e sem, sempre belo. É uma sensação de conforto e maravilhamento com a beleza da sua voz, da sua arte que é um encontro de velhos amigos, amigos de diferentes experiências – assim são sempre os amigos -, apesar de ter dobrado a minha idade e também o cabo da boa esperança, com tantos parceiros, me sentia um deles.

Após tomar conhecimento mais profundamente da sua obra, queria poder escutar todas as músicas que eu adorava, só que um show tem limite de tempo e então terminava por entender que meu amigo do “clube da esquina” me daria a oportunidade magnífica de cantar com ele algumas canções. Todas as canções dos shows que fui são clássicas. Mesmo que o repertório fosse alterado e que tenha ficado de fora muitos outros clássicos.

Um artista como o Milton eterniza a máxima que ele fez canção: “todo dia é dia de viver”. E poder vê-lo é se enternecer com um show que não tem nada de novo e ao mesmo tempo tem tudo de novo, por entregar o afeto sútil e sibilante de uma voz e de composições que nos avisam “que os sonhos não envelhecem”.

Logo que soube do show em Lisboa, comprei ingressos, a mais inclusive pois obrigaria meu amigo Rodrigo Rocha a ir comigo – amigos podem ter sorte também. Mais barato do que os ingressos no Brasil, no geral, e não esgotados tão rapidamente, essa que seria a sua “última sessão de música” teria meu aplauso.

Enquanto o show não começava alguma brazuca desfilou com a toalha do Lula e gritamos animados: #ForaBestaFera! 

O show foi lindo, esplendoroso e cheio de vida. No Coliseu dos Recreios lotado, e com a participação final de Carminha, a cantora portuguesa que gravou com ele uma versão muito bonita de “Cais”.

A música que associei a superação daquele quadro depressivo, que me emociona sempre que ouço, diz assim: 
“Rouxinol tomou conta do meu viver
Chegou quando procurei
Razão pra poder seguir
Quando a música ia e quase eu fiquei
Quando a vida chorava mais que eu gritei
Pássaro deu a volta ao mundo e brincava
Rouxinol me ensinou que é só não temer
Cantou, se hospedou em mim

Todos os pássaros, anjos dentro de nós
Uma harmonia trazida dos rouxinóis”

Rouxinol é um passarinho, que canta lindamente. Acho que não errei. 

Viva Milton Nascimento passarin!

Marcelo Brice
é doutor em sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), professor na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e atualmente realiza estágio pós-doutoral em literatura na Universidade Nova de Lisboa.