Luiz Armando Costa
 
Quando o destino concedeu-me entrevistar Mestre André (para o Jornal do Tocantins) no início da década de 90 (com o repórter fotográfico Roberto Carlos) – há quase três décadas - pensava fosse encontrar alí um velhinho fraco, quase entrando nos 100 anos. E estava próximo.
 
Mestre André (que hoje é nome de banda em Porto Nacional formada por portuenses ilustres e dele Quixotes memorialistas) fazia parte da memória da cidade como um dos grandes canoeiros a labutar na travessia do Tocantins quando era um rio. 
 
Ganhava o pão, Mestre André, com o remo. E a alma com a música na banda de outro mestre, o Adelino que, do extremo Norte de Goiás (Porto Nacional), tinha no Palácio das Esmeraldas, no outro extremo (Goiânia), o Sul, um admirador confesso: o governador Pedro Ludovico Teixeira. 
 
Mestre André, um negro; Mestre Adelino, um branco. Durante anos, jogara-se luz em apenas um dos mestres. Dois extremos na cor e gestos que convergiam em pelo menos dois pontos: persistência e honra. Sem implicações de classe ou cor que hoje pudesse provocar.
 
No quartinho de uma casa modesta, na baixada de uma ladeira, já quase no final da rua Ayres Joca (Pau D´Óleo) – na perpendicular de uma viela que dava na Igreja de Padre Luso (São Judas Tadeu) – deparei-me, entretanto, com um negro magro, mas altivo, cabelos brancos, certamente, e memória ainda intacta que contrastava com os cuidados que lhes dedicavam, com zelo e razão, os familiares.
 
Uma conversa que rendeu uma página para o Jornal do Tocantins, mas que daria vários livros, não fosse o respeito ao seu propósito, considerados as circunstâncias e o próprio estado de saúde do Mestre. 
 
Estava diante de uma quase lenda respeitada por avós, bisavós, enfim, por toda uma cidade. Respeito erguido por um par de canoa e remo (e muita honestidade) cuja memória, a não ser por parcos registros, vai, lamentavelmente, como tantas outras, se esvaindo. Os portuenses cada dia mais palmenses. Ou seja, de todo lugar e de lugar nenhum.
 
Indagado os motivos de dedicar uma vida inteira a transportar pessoas de um lado a outro do rio, Mestre André me disse, de forma prosaica, que precisava sustentar-se. E que espairecia a ver o encontro do remanso do rio com a tormenta do rebojo. Uma confluência, intuo, de guerra e paz que dividia com outros canoeiros como mestre Adalgiso, com morada a menos de 200 metros do Tocantins.
 
Presenciara tanto as grandes epidemias de malária como de barriga dágua (esquistossomose) nas cheias, numa época sem vacinas. Catapora, tosse braba, tifo e chagas. O encontro do remanso com a volúpia das batedeiras das pedras, no sentido da foz, dizia-lhe, entendi, muito de sua resistência e longevidade. Não tinha SUS nem dinheiro do governo para ajudá-lo.
 
Hoje o Estado do Tocantins entra no sexto mês de uma pandemia com mais de 400 mortos e aproximando-se de 30 mil contaminados. E uma estupenda discrepância entre os recursos financeiros disponibilizados e os resultados que explodem a cada 24 horas. 
 
Não se vê remanso a bombordo ou estibordo. As batedeiras estão no convés, popa e proa. E não se distingue um Mestre André no jacumã. Tanto de moral como de coragem para não deixar a tormenta engolir o remanso. Mestre André se foi por idade e provoca saudade dos tempos em que um remo e uma canoa se bastavam. Não só: eram o bastante.