Salatiel Soares Correia
Sempre respeitei a obra intelectual do saudoso historiador Boris Fausto, que se notabilizou pelos excelentes trabalhos que escreveu sobre o ex-presidente Getúlio Vargas. A meu juízo, esse ex-professor da Universidade de São Paulo destacou-se como o mais habilitado conhecedor da chamada Era Vargas. Ele se manteve nessa posição até aparecer o jornalista Lira Neto com o resultado de um mergulho de cinco anos na vida do mais importante homem público do país, depois do imperador Dom Pedro II. Generosidade e humildade científica eram qualidades conhecidas desse grande intérprete do Brasil que foi Boris Fausto. Convidado por Lira Neto, ele emitiu a seguinte opinião sobre a obra de um autor que se ombrearia e, em muitos pontos, superaria os livros aos quais Boris Fausto se dedicara, em grande parte de sua vida acadêmica, a pesquisar. A respeito dos escritos de Lira Neto, Boris Fausto assim se expressou: “Com base numa impressionante pesquisa, Lira Neto narra, com brilho e riqueza de detalhes, a história de vida pessoal e da vida pública de Getúlio, dos tempos do Rio Grande do Sul à entrada na cena política da capital da República.” Boris Fausto mostrou toda sua grandeza reconhecendo em Lira Neto o valor de uma obra que, em muitos aspectos, superou a dele próprio.
O QUE EXISTIA POR TRÁS DO SORRISO DA RAPOSA
Salatiel Soares Correia
A morte do interventor mineiro Olegário Maciel aguçou a disputa em torno de sua sucessão. A luta foi intensa entre as duas facções políticas que disputavam o poder nas Gerais. De um lado, se encontrava o líder político Antônio Carlos. Este desejava que fosse efetivado o então interino Secretário do Interior do governo de Olegário, Gustavo Capanema. Reforçava o apoio a Capanema o apoio do então interventor do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha.
Do outro lado, o pretendente ao cargo era o filho do ministro das Relações Exteriores, Virgílio de Melo Franco. Agregava apoio a essa candidatura o nome de um gaúcho que fez história no Brasil vitorioso da revolução de trinta: Oswaldo Aranha.
A situação política era delicada, pois pender para um ou para outro lado significava provocar um racha na expressiva bancada de 37 cadeiras a que tinha direito o estado de Minas Gerais na elaboração da então constituinte que germinava. Minas era de longe a bancada mais numerosa.
Ante ao impasse político gerado pela sucessão de Olegário Maciel a raposa que comandava o país começava a evidenciar toda sua astúcia. “Todos julgam que deve decidir; mas se nomeio Capanema renunciam os ministros da Fazenda e do Exterior; se nomeio Virgílio, renuncia Flores”, disse ele.
Ciente da situação, nada definiu esticando a decisão ao seu limite. Voltava assim à velha figura da infância quando para esconder da ira do general Manuel Vargas o menino travesso que tinha deixado quebrar o retrato do ídolo de seu pai, Júlio de Castilhos subiu no umbuzeiro e dele só desceu quando a ira paterna se esvairou.
Durante o indefinido processo de escolha o velho Afonso Arinos de Melo Franco, pai de Virgílio cometeu uma indiscrição não própria do jeito mineiro de comer o mingau pelas beiradas: anuncia que o escolhido foi o seu filho. O caldeirão político ferveu.
O lado descontente certamente provocaria um rompimento entre os mineiros e isso poderia impedir a tão sonhada pretensão da velha raposa a presidência da República pela via indireta. Sem perder a calma ante as satisfações que dele fora tomar o então preterido Gustavo Capanema, o líder máximo do processo sucessório blefa: “É mentira é o senhor, que está no cargo como interino e tem direito à efetivação. Mas tenho dificuldades. Não posso romper com o Oswaldo. Preciso dele nesse momento. Fique no Rio quantos dias necessite. Procure convencer o Oswaldo a aceita-lo, e será o bastante.”
Ficava assim mais uma vez evidenciado o estilo e a astúcia desse líder político em transferira responsabilidade que era de fato sua para terceiros. Deixava a poeira baixar para que o horizonte fosse visto com maior clareza. Ganhava tempo com isso. Um tempo que usava para intensas articulações políticas sem nunca ninguém saber o que ia no fundo de sua alma.
Durante o processo de escolha retirou os gaúchos—Oswaldo Aranha e Flores da Cunha—do processo sob a alegação de que esta era uma questão que deveria ser resolvida pelos mineiros. Estimulou um entendimento entre os dois pretendentes ao cargo se comprometendo a escolher um deles. Ante a ação do mestre, Virgílio e Capanema devolvem a bola para o chefe do governo provisório. Ele que decidisse por um dos dois desde que não houvesse um terceiro na disputa.
A velha raposa imediatamente convocou o ex-governadore então maior líder político de Minas, Antônio Carlos e solicitou a ele uma lista sêxtupla. Este a apresentou ao chefe que a recusou solicitando o acréscimo de mais um nome: “põe aí também o Benedito Valadares, para completar a lista.” Dito e feito. A velha raposa tirou do colete um nome que ninguém esperava, mas que só ele sabia que lhe seria fiel como um aluno que venera seu mestre. Quanto ao episódio vale aqui a seguinte curiosidade: Será o Benedito? É a expressão que se impregnou no imaginário popular e esta veio desse episódio.
Numa outra disputa para escolha do ministro da Guerra voltou a se repetir o modo de agir da raposa: na disputa entre tantos nomes disponíveis na ativa, a astúcia desse aluno de Maquiavel escolheu o nome de um militar há muito na reserva que vivia na pacata cidade mineira de Três Corações como dono de uma pacata fábrica de cerâmica. Tratava-se do general Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso, tio-avô do futuro presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Mais uma vez a cena se repetia: a escolha recaíra sobre quem ninguém esperava, mas que o astuto articulador sabia que não lhe causaria problemas de hierarquia. Além disso, um general da reserva viria a resolver a querela que existia entre os generais da ativa pela disputa do cargo.
Fato semelhante ocorreu na escolha do comandante da Força Expedicionária Brasileira que iria combater na Itália. O filho do general Manuel Vargas poderia bem ter escolhido dois dos mais brilhantes nomes dos quadros militares: os generais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra. Mas a escolha recaiu sobre um general de pouca expressão no exército: Mascarenhas de Moraes. Descrito pelo autor dos escritos que ora analiso como sendo “um homem miúdo, inexpressivo e míope, antítese do estereótipo do guerreiro militar, havia transcorrido [na carreira] sem maiores brilhantismos.” Como toda ação política tem um propósito. O propósito da velha raposa era de evitar “transformar Dutra ou qualquer outro chefe militar mais ambicioso, como Góes Monteiro, em herói nacional.” Como a raposa via longe ela estava no fundo evitando o aborrecimento de alguma sombra que poderia futuramente obstacularizar seu caminho.
Os três episódios acima descritos encontram-se no segundo volume da trilogia que escreve o jornalista e reconhecido escritor cearense Lira Neto a respeito da mais enigmática e marcante personalidade política do Brasil republicano: o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas.
Munido de extensão documentação e de um admirável projeto de vida Lira Neto vem construindo uma obra que nos possibilita um novo olhar na vida do líder que por mais tempo se manteve no poder no país construindo as bases de nossa modernidade. Sem emitir julgamentos o talento da escrita de Lira Neto possibilita nesse segundo volume enxergarmos o homem sombrio, suscetível as paixões como somos nos mortais. Um homem capaz de puxar o tapete até dos correligionários políticos se a situação assim exigisse. Com puxou de Oswaldo Aranha, seu mais próximo auxiliar, no momento em que julgou que este ante ao prestígio que tinha com os norte americanos poderia lhe fazer sombra na necessária negociação que o país teria que ter com os Estados Unidos para volta da democracia. Um homem que já carregava consigo tendências suicidas, idéia essa evidenciada em momentos de tensão como assim nos demonstra Lira Neto em episódios anteriores a concretização do ato em 1954. A meu juízo, o autor conseguiu transformar o líder da revolução de 30 numa pessoa de carne e osso sem em momento algum desconsiderar o mito e sua inegável importância como construtor dos direitos trabalhistas , de instituições que perduram até hoje e da extrema habilidade política em conseguir vantagens para o país na segunda guerra mundial como foi o caso da construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda. “Para aqueles que pretendiam bancar os espertos contra ele, Getúlio Vargas sempre encontrava uma maneira de se revelar esperto e meio.” Assim dizia o político Gilberto Amado sobre a raposa dos pampas. Nenhum político brasileiro conseguiu surfar nas ondas do poder com tanta astúcia quanto o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas.
Salatiel Soares Correia é Engenheiro, Bacharel em Administração de Empresas,Mestre em Energia pela Unicamp.É autor de 8 livros relacionados aos temas Energia, Economia e Desenvolvimento Regional
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