Era 24 de novembro de 2021 quando Dom Phillips entrou em contato a primeira vez comigo por mensagem direta no Twitter. Naquele dia, imagens com centenas de balsas de garimpo perfiladas no Rio Madeira atuando ilegal e livremente chocavam o mundo.

Sem saber que eu já conhecia seu trabalho primoroso como jornalista de vários veículos importantes do mundo, como The Guardian, The New York Times e The Washington Post, Dom se apresentou apenas como um “jornalista inglês” e gentilmente me pediu para termos uma conversa por WhatsApp.

Informou que estava fora das notícias, que estava fazendo um livro sobre conservação da Amazônia e que desejava ter uma conversa comigo por vídeo chamada, a qual levaria por volta de 45 minutos.

Depois de alguns desencontros, finalmente conseguimos conversar. Já era dia 8 de dezembro. Ele em Salvador; e eu já em Boa Vista-RR, em uma missão-combate ao garimpo ilegal, dessa vez na Terra Indígena Yanomami.

Dom deu mais detalhes sobre seu projeto e disse que queria uma colaboração para o seu livro sobre soluções para manter a floresta em pé. Informou-me que gostaria de saber e de entender a perspectiva de um servidor do Ibama que atuasse diretamente no combate a ilícitos ambientais.

Nossa conversa iniciou e imediatamente Dom mostrou um profissionalismo peculiar ao pedir para gravar a entrevista para seu registro próprio e que cuidaria do material com o máximo de cuidado, mas que entendia perfeitamente se eu não me sentisse à vontade. Disse-me que compreendia que servidores públicos viviam um período bastante difícil de assédio e perseguições. Conversamos por quase duas horas e meia, tendo os 45 minutos previstos de entrevista virado motivo de piada entre nós. Jamais teria sido suficiente. 

E foi durante esse tempo em que percebi que eu estava ali conversando com jornalista comprometido com seu trabalho, mas principalmente com uma pessoa apaixonada pela Amazônia e pelos povos que nela habitam. Suas perguntas claramente buscavam adentrar na questão mais complexa e importante de todas, para compreender os problemas da Amazônia: a questão social.

Eu sabia que não estava ali falando com um jornalista qualquer, mas também não esperava por perguntas tão densas que me levassem a profundas reflexões sobre o meu próprio papel como fiscal do meio ambiente na Amazônia. 

Dom não parecia interessado em como se dava o garimpo ilegal na Amazônia. Isso ele já sabia. Ele parecia muito mais preocupado em entender o processo que levava as pessoas a se submeterem a situações subumanas e arriscadas em atividades ilegais, como as de extração de ouro, madeira; na pesca, na biopirataria, no tráfico de animais silvestres, ou mesmo, em busca de um pedaço de terra. “Como estas pessoas eram aliciadas e exploradas?”, “Quem as explorava?”, “Qual a relação delas com o crime organizado que hoje toma conta da Amazônia?” 

Mas a pergunta que tirou do prumo foi: “Como os servidores do Ibama, que estão na linha de frente do combate aos ilícitos na Amazônia, enxergavam e lidavam com estas pessoas que, pela leitura seca da lei, estão claramente ali cometendo crimes, mas que ao mesmo tempo estão sendo exploradas por grupos poderosos e submetidas àquelas situações muitas vezes por necessidade e falta de alternativas?”. 

Esta é uma pergunta singular porque as pessoas muitas vezes não se dão conta de que dentro do uniforme de fiscal há também um ser humano como qualquer outro e, embora estejamos ali representando o Estado e zelando pelo cumprimento das leis, evidentemente somos sensíveis à crueldade do abismo social existente nesse país, especialmente na Amazônia. 

Foi então conversando sobre estas e outras coisas que tive o imenso privilégio de conhecer Dom Phillips para além de suas reportagens e textos brilhantes.

Nele eu vi uma preocupação genuína com o futuro não apenas da floresta em si, mas das pessoas que vivem, cuidam e dependem dessa Amazônia que é tão falada, e, ao mesmo tempo, tão esquecida. Sua consternação ao ouvir a coleção de histórias de boicotes, abusos e perseguições internas que os servidores do Ibama e do ICMBio têm sofrido ultimamente se traduziu em inesquecíveis palavras de conforto que me deram, naquele momento, a motivação necessária para seguir em frente nessa missão cada vez mais arriscada, que é o de proteger e de promover o uso sustentável dos nossos recursos naturais. 

Estas e muitas outras histórias estavam sendo registradas em seu livro o qual talvez nunca teremos a oportunidade de ler porque Dom Phillips acabou tendo a sua vida retirada, num crime bárbaro e ainda repleto de lacunas, pelas mesmas pessoas por quem outrora ele teria demonstrado tanta compaixão. Uma trágica ironia. 

E foi dessa forma, viajando pelos rios e estradas da Amazônia, dormindo nas comunidades, conversando com as pessoas e amplificando suas vozes que Dom Phillips, o “jornalista inglês”, cultivou seu amor pela cultura e pelos povos da floresta e se tornou um brasileiro muito acima da média.

Ele partiu desse mundo nos legando a importante lição de que, se quisermos um destino diferente para a Amazônia, nós precisamos ter um olhar diferenciado às pessoas que nela vivem.

P.S. Se você leu até aqui, deve ter percebido que o indigenista Bruno Pereira não foi citado neste texto. É que sobre ele eu ainda não consigo falar. Tentei, mas são muitos os gatilhos. Quem sabe daqui alguns dias...