Tássio de Oliveira Soares
presidente do Conselho Regional de Psicologia 
 
A relação próxima de amizade me permitiu que participasse, nesta segunda-feira, 4 de abril, do sepultamento, sem aglomeração, de Nara Wanda Zamoura Hernandes. Fui seu aluno por toda minha graduação em Psicologia e por continuar tendo na professora Wanda uma mentora, devo registrar sua contribuição inestimável à área da Psicologia no Tocantins, de forma que me senti convidado a registrar não um obituário, mas relevantes memórias de uma vida dedicada às demais vidas humanas.
 
Os escritos que ora faço, são com os registros que ela mesma me confiou como públicas, e que tomei nota ao lado de seu leito, admirado de sua tamanha lucidez, em algumas das incontáveis visitas que a fiz no período de sua doença. 
 
Wanda, como era conhecida, nasceu no dia 24 de julho de 1937 no Sul de Havana, em Cuba, onde cresceu e viveu a maior parte da sua vida, da qual lembra de uma infância lúdica e feliz. Depois de concluir os estudos secundários, foi selecionada e ingressou no curso de Psicologia da Universidade de Havana, como aluna assistente, em 1954, tendo se formado em 1959. Especializou-se na área de Pedagogia no Instituto de Pedagogia da mesma universidade onde se formou.
 
Posteriormente, foi selecionada para Programa de Pós-graduação na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), atual Rússia, onde concluiu mestrado sobre desenvolvimento humano a partir das teorias de Lev Vigotsky (a quem citava com apreço em suas aulas), na Universidade da Amizade dos Povos, em Moskow, atual Universidade Russa da Amizade dos Povos (Instituto Estatal de Educação Superior (PFUR).
 
De volta à Cuba, concluiu o seu segundo mestrado, desta vez na Universidade de Havana, na área da Psicanálise, matéria que conhecia com profundidade, apesar de ser uma defensora da psicologia sócio-histórica.  Em Cuba, além de trabalhar como psicóloga, Wanda construiu sua vida familiar.
 
Casou-se em 1960 com Juan Fernández com quem teve sua única filha, Wendy, que veio a falecer de meningite, aos cinco anos de idade. Logo após a morte da filha, também faleceu seu esposo. Além dos pais, Wanda ainda perdeu a irmã do meio, Tânia Laura, que deixou os filhos, sobrinhos, a quem Wanda tratava como filhos.
 
Em 1968 teve segunda núpcias com professor José Lamadrid, com quem conviveu em união matrimonial até 2003, e com quem manteve uma relação próxima, de carinho até o fim de sua vida.
 
Além de estudar em Moscow, também trabalhou na Nicarágua e realizou participações em eventos no Brasil, no começo da década de 90, nos quais abordou seu trabalho como internacionalista. Em 1994 após seu esposo ter se mudado para o Brasil, ela também veio e naturalizou-se brasileira.
 
Nestas terras tupiniquim, trabalhou inicialmente em Goiás e depois, na gestão da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS), atuou na Pró-reitoria de Pesquisa e Extensão. Esteve à frente do projeto Universidade Solidária no Tocantins, que tinha como objetivo trabalhar em municípios pobres de todo o País, visando colaborar para a melhoria da qualidade de vida de suas comunidades. 
 
O destaque da pesquisadora no projeto, com inserções no Tocantins e no Piauí, lhe permitiu conhecer muito do Brasil e lhe rendeu um prêmio que ganhou das mãos da então primeira-dama do Brasil, Dona Ruth Cardoso. 
Em 1995, conseguiu o reconhecimento dos seus diplomas de graduação e mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina, e então pode ter registro no CRP e trabalhar com docência como sempre fez mundo afora.
 
A psicóloga e professora Nara Wanda pertenceu à primeira formação do colegiado do curso de Psicologia do Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA) e foi a primeira professora de Psicologia no Tocantins onde trabalhou com atividades de ensino, pesquisa e extensão. Este é um capítulo interessante da história dela.
 
Qualquer um de nós, seus alunos, ao lembrar de suas aulas podemos escutar em suas mentes seu sotaque espanhol “Mira cá, mi filinhos soy una brasileña con sotaque chique” ou “pagam por processos básicos e ganham de brinde espanhol” ou, ainda, “soy una belinha de cabelos brancos”. Grande partes dos psicólogos formados aqui no Tocantins estão marcados por seu ensino.
 
Com a criação do CRP-23 (TO) e desmembramento da jurisdição do Tocantins do CRP-09 (GO), ela compôs o I Plenário do CRP-23 (2013-2016). Atuou nas comissões de Orientação e Ética, Clínica e Avaliação Psicológica. 
Mesmo com idade avançada, sempre esteve ativa nas questões de nossa profissão, tendo sido conselheira também do II Plenário (2016-2019), onde se destacou na criação e condução da Comissão de Gerontopsicologia e representação do CRP-23 no Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa Idosa (COMDIPI), tendo se afastado das atividades por motivos de saúde. Por fim emprestou ao III Plenário, este que eu presido, seu nome, com muita satisfação.
 
Entre as honrarias que recebeu, Wanda lembrava com alegria, além do encontro com Dona Ruth, o título de cidadã Palmense entregue em 2002 pela Câmara Municipal de Palmas. Sempre citava também suas medalhas: Medalha pelo labor internacionalista, Medalha pela educação Cubana e Medalha pela Defesa da mulher cubana. 
 
Desde que foi naturalizada brasileira, Wanda teve de recusar a naturalidade cubana e fixou suas raízes aqui no Brasil, no Tocantins, em Palmas, onde passou a morar também com a irmã Neri, desde 1997, quando esta se mudou de Cuba para o Brasil. 
 
Neri, sua irmã, é a única familiar que mora no Brasil e guarda laço consanguíneo com Wanda. Foi sua fiel companheira com quem Wanda partilhou momentos de alegria e dificuldades.  Neri e o professor Lamadrid, seu segundo e último esposo, eram sua família mais próxima. No entanto os anos de docência, o acolhimento à comunidade cubana em Palmas e seu envolvimento em atividades diversas na sociedade palmense, renderam-lhe uma outra família e uma prole de filhos e netos afetivos. São muitos e ajudaram com gratidão nos cuidados a ela, especialmente nestes últimos meses. Gostaria de falar de todos, mas isto exige uma escrita à parte. 
 
Wanda comemorou há pouco mais de dois anos seu aniversário de 80 anos em uma festa, rodeada de pessoas por ela querida, como queria.  Lidou com uma doença terminal que não lhe derrubou a estima ou a memória! De personalidade forte, não excitava em firmar seus posicionamentos. Seu último “ato de rebeldia” foi não ir ao hospital e morrer em casa cercado de pessoas que a amava.
 
Quando saudável, sempre passeava pela cidade acompanhada de Neri. Muito conhecida em Palmas ao primeiro olhar, Wanda era icônica. Uma pessoa irreverente, sempre bem vestida, não gostava de repetir roupas, e usava sua inconfundível maquiagem. Se ouvisse ela iria saber que ela não se esmerava no português, dedicação que lhe sobrava na sabedoria e no serviço ao outro. 
Mulher de fé, católica dedicada, nunca escondeu sua religiosidade com sua forma de crer em Deus. 
 
Termino com a sensação de que não escrevi tudo, por óbvio se tratar de uma grande vida. Sua vida foi de serviço à vida humana. Quem a via sua firme, não imaginaria que sua força tinha gentileza e delicadeza incomensuráveis.  Wanda foi uma psicóloga que serviu ao seu tempo, mas uma mulher à frente do seu tempo. Um ser humano pra registrarmos na história! Obrigado, Querida Nara Wanda Zamora Henrnandez.