Thaise Nardim
Professora da UFT, doutora em Artes da Cena pela UNICAMP
 
Uma característica comum a momentos de excepcionalidade como a pandemia de COVID-19 que vivemos hoje é seu potencial para nos fazer olhar para coisas que, por mais que estivessem bem à nossa frente, não vínhamos enxergando. Embora eu discorde das pessoas que têm dito que o vírus seria O grande professor do século, responsável por um “novo normal” melhorado (não sou tão positiva assim), também acho impossível negar que a pandemia nos arranca de nossa zona de conforto e desestabiliza nossas certezas, ao nos desafiar com uma série de problemas que não pudemos prever e nos confrontar com a necessidade de sustentar a vida do jeito que der. Para quem já vive sustentando a vida do jeito que dá, isso certamente só piora as coisas. Porém, isso pode ser diferente para nós, que podemos parar para escrever ou ler este texto, que provavelmente estamos mais ou menos seguros exercendo nosso direito à preservação da vida.
 
Há uma metáfora conhecida no meio teatral que diz que são as margens que permitem ao rio correr. Essa metáfora é usada para que os atores compreendam que as técnicas de atuação não são inimigas de sua criatividade, mas que elas impõem algumas condições para o corpo do ator e essas condições não são restrições, mas são o berço e o trampolim para a criação das personagens – que, se não estivessem margeadas pela técnica, poderiam dar em qualquer coisa. Assim eu proponho que nós, a partir de nossos postos de privilégio, olhemos para a pandemia nesse momento, questionando como suas terríveis restrições podem colaborar para que inventemos algo de novo – que provavelmente não será um normal todo novinho, mas talvez traga consigo a anormalidade de que tanto necessitamos para inventar outros mundos.
 
No caso deste texto, outros mundos para as artes da presença – o teatro, a dança, o circo, a arte da performance e seus derivados.
 
Para as artes e as culturas, como campos da vida social que são, a pandemia também impôs enormes desafios. A necessidade do isolamento social preventivo, que paralisou a indústria, o comércio e os serviços, interrompeu de imediato todo e qualquer evento artístico: exposições de artes visuais, apresentações teatrais, projeções cinematográficas e assim por diante. Isso porque, para além de terem no encontro dos corpos espectadores uma de suas principais matérias, os eventos artísticos são socialmente entendidos como atividades não produtivas, não essenciais – e, portanto, são vistos pelo senso comum como fazeres mais “paralisáveis” do que outros.
 
Esse modo de entender a produção artística e cultural é bastante problemático, e é em parte causa, em parte consequência, de termos uma Economia da Cultura enfraquecida. Mas esse é um assunto que desenvolverei em outro texto. Para o de hoje, é importante destacar que, a despeito do que pense o senso comum sobre a necessidade ou desnecessidade das artes, sobre seu papel na economia ou na vida de todos nós, os artistas existem, e são profissionais que encontram no fazer artístico o seu sustento. Esse sustento é tanto material - o salário que paga o aluguel, a comida e o que da vida precisa ser pago com dinheiro - quanto existencial – que, embora sem valor monetário, também possibilita que continuemos vivos.
 
Tendo isso em vista, podemos ter uma dimensão dos desafios que esses profissionais estão encontrando nesse momento. Sabemos que não está fácil pra ninguém e não é a minha intenção dizer que os artistas são seres especiais e merecem mais atenção ou caridade: estou apenas relatando uma realidade que conheço bem, e que acredito que grande parte dos leitores desconheça.
O fato é que, se para artistas que produzem objetos segue existindo a possibilidade de vender ou expor algo depois da pandemia, para os artistas das artes presenciais até mesmo isso é impossível. Então, só nos resta nos reinventarmos, trocando a roda enquanto o carro da vida segue a toda velocidade.
 
Frente a essa situação, duas têm sido as saídas encontradas pelos artistas da presença para continuar trabalhando. A primeira delas é a via institucional, por meio de editais de apoio que redistribuem recursos públicos. Esses editais são promovidos principalmente por secretarias estaduais e municipais de cultura e por empresas privadas beneficiadas pela isenção de impostos (que redistribuem o valor de que foram isentas para produções artísticas de sua escolha). Em Palmas, por exemplo, temos o edital Palmas Curte Arte em Casa, promovido pela Fundação Cultural de Palmas. Esses certames vêm conseguindo distribuir alguma renda para os trabalhadores das artes e das culturas, comprando os registros audiovisuais de obras de arte presencial que já estavam prontas antes da pandemia nos atingir e os exibindo em plataformas online.
 
Esse formato é muito importante por ter subsidiado produções teatrais que tiveram suas estreias canceladas, músicos cujos shows foram desmarcados e afins, mas ele também é bastante conservador. Como disse, os produtos comprados por esses editais são, de modo geral, registros de obras de arte que, originalmente, não explorariam o audiovisual em sua linguagem – obras que não se relacionariam com a filmagem e a transmissão online se não tivessem a urgência de fazê-lo. Por esse motivo, é muito pequena a margem para a experimentação de novos formatos, para que os artistas possam correr o risco de inventar algo novo a partir da fricção da presencialidade com a virtualidade. Então, o que vemos custeados por esse editais até o momento são apresentações de música, que seriam feitas sobre um palco, filmadas; são peças de teatro filmadas; são performances que não foram feita para o suporte audiovisual, filmadas. Tudo isso exposto em uma plataforma para a qual se ajeitam esses registros. Uns se ajeitam melhor, outros nem tanto, mas, ainda assim, o espectador consegue aproveitá-los bem.
 
Já a outra saída encontrada pelos artistas da presença nesse período tem caráter mais experimental que a anterior, e é dela que pode vir a nascer algo de novo - uma nova linguagem da arte, talvez. Nessas experiências, trata-se não apenas de filmar para registrar e reproduzir a obra como ela já era, mas de arriscar inventar junto com as tecnologias a arte que pode surgir da mistura de elementos presenciais com a exploração dos recursos audiovisuais e online - experimentações essas que são custeadas pela cobrança de ingressos ou passando-se um “chapéu virtual”.  
 
Como exemplos dessa alternativa, a Plataforma Performers Sem Fronteiras (RJ) oferece na performance “Crescer para passarinho” uma “experiência de cuidado poético online”, em que explora os limites do convívio e do afeto, marcas de sua pesquisa presencial, por meio de diferentes funcionalidades da plataforma Zoom, com interação dos espectadores e propostas experimentadas por todos, performers e espectadores, ao mesmo tempo. De Macapá, o festival de performances “Mizura”, organizado pelos artistas Nau Vegar, Thayse Panda e Geisa Martins, que migrou emergencialmente do presencial para as lives do Instagram, busca incorporar poeticamente as ferramentas da nova plataforma, dando de ombros para os puristas que dizem que a arte da performance só poderia acontecer sem mediação tecnológica. No mesmo sentido, meu projeto “Pequenas Performances Para Isolados” explora o whatsapp como única  plataforma de uma ação que mistura obra de arte e oficina, utilizando um grupo de mensagens para enviar instruções escritas para performances que, após realizadas, têm seus registros compartilhados pelos participantes por meio de um outro grupo. Completa o projeto um terceiro grupo, dedicado a um chat síncrono semanal em que falamos sobre a teoria da arte da performance e partilhamos percepções sobre o processo. Tudo junto e organicamente misturado.
 
Essas duas saídas encontradas pelos artistas da presença não são, necessariamente, boas ou ruins em si mesmas. Elas são duas estratégias diferentes, que têm seus pontos fortes e fracos, uma atendendo melhor a certo público e demandas, a outra atendendo melhor a outro público e demandas. Sem dúvida, elas têm em comum a capacidade de possibilitar aos espectadores de muitos lugares diferentes (desde que possam usar a internet) a dádiva do acesso à arte, mais necessária do que nunca frente à situação de limitação, ansiedade e incerteza que vivemos. E, quem sabe, talvez essas “saídas” nem mesmo sejam saídas, mas sim entradas – o início de algo totalmente novo, misturando teatro e vídeo e interação online e hologramas e vida cotidiana e... Então, poderemos lembrar da pandemia como um momento terrível da nossa história, mas que deu margens ao rio das artes do futuro.