Maurício Hashizume 
Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra (Portugal), pesquisador da área de movimentos sociais na América Latina, jornalista e professor
 
São muitas as possíveis aprendizagens políticas vindas da Bolívia, este país vizinho tão pouco (re)conhecido, quando não alvo de grosseiros preconceitos, em paragens verde-amarelas. Não apenas pelo resultado da apuração das urnas nas eleições gerais realizadas no último domingo (18), que retumbantemente sinalizou para dentro e para fora de suas fronteiras o empenho popular e destemido pela restituição das bases mínimas de um ambiente democrático, mas também pelos diversos processos sociais que o tornaram possível e que apontam para relevantes horizontes de “mirada”.
 
Desde que se pôs em marcha um golpe com carregados traços imperiais, fundamentalistas, econômico-setoriais, classistas e racistas, com uso e abuso de variadas formas de violência estatal e paraestatal, na esteira da confusão armada em 2019 após acusações - vindas principalmente da Organização dos Estados Americanos (OEA), porém depois desconstruídas - de fraude eleitoral, importantes e representativos segmentos da sociedade boliviana não descansaram e muito menos se acomodaram com a tomada do poder à força por uma parcela oportunista da oligarquia boliviana.
 
Diante de uma gestão ilegítima (a qual deveria ter sido muito mais temporária do que de fato foi) de Jeanine Áñez, senadora que compunha a bancada de oposição ao governo do Movimento Ao Socialismo (MAS) liderado pelo ex-presidente Evo Morales a qual se instalou na Presidência, diversos setores mantiveram intensas atividades para demonstrar repúdio aos abusos, truculências e arbitrariedades em curso, cobrando o restabelecimento de fundamentos democráticos na condução do Executivo nacional.
 
Com 100% da apuração concluída nesta sexta (23) na Bolívia, a chapa formada por 'Lucho' Arce e Davi Choquehuanca, do mesmo MAS-IPSP de Morales, sacramentou uma vitória absoluta com 55% dos votos válidos, confirmando, até com margem para cima, as 'contagens rápidas' divulgadas por institutos privados algumas horas após o encerramento do período de votação. 
 
A vitória eleitoral de Arce chega a ser maior do que a de Evo Morales em 2005. Naquela ocasião, o vencedor teve a preferência de 53,7% e o segundo colocado (“Tuto” Quiroga, do Podemos) ficou com cerca de 29%, mesma porcentagem alcançada agora por Carlos Mesa, do partido Comunidade Cidadã (CC). Enquanto partidários deste segundo e do terceiro colocados - Luís Fernando Camacho (Creemos), líder político/empresarial/religioso de Santa Cruz de la Sierra e um dos artífices do golpe do ano passado (escolhido por apenas 14%) - trocam acusações e agressões na tentativa de apontar 'culpados', a posição de Arce parece cada vez mais consolidada. Mesmo com os anúncios tanto da presidenta temporária Jeanine Añez como dos candidatos derrotados (em especial, Mesa) logo na sequência das projeções, pairava ainda no ar uma certa intranquilidade quanto à aceitação concreta do resultado da votação. 
 
Tantos foram os absurdos e as imposições presenciadas na nação sul-americana (recentemente e no curso da própria história) que receios de confusões e “viradas de mesa” não se dissiparam de súbito. Mas, muito por conta da vitória retumbante nas urnas e do indiscutível suporte das bases, consolida-se a sensação de que, pelo menos por ora, a supremacia masista, que volta ao poder depois de um conturbadíssimo ano, está sendo aceita, em cumprimento a preceitos democráticos. Ainda há lampejos de insatisfação e acusações revisitadas de fraudes aqui e acolá, mas sem grandes repercussões a ponto de colocar o pleito em risco. 
 
Diante de tudo isso, três lições relevantes vindas da vizinha Bolívia entre muitas, podem ser destacadas. Primeira delas: a fórmula capitalista neoliberal extremista, que tem aumentado ainda mais a carga classista, racista e heteropatriarcal de violências estruturais, pode até encontrar “acolhida” em parte das próprias populações subalternizadas em contextos “periféricos”, mas está longe de ser absoluta e, ainda muito menos, estável.
 
Segunda: golpismos fascistas, que abalam os alicerces democráticos, se enfrentam com mobilização social. As urnas refletiram um enorme esforço organizativo levado a cabo durante o estendido interregno de governo de exceção por uma ampla diversidade de coletividades. 
 
Terceira: triunfos eleitorais não devem tomados como “soluções mágicas” para o enfrentamento das crises conjugadas e profundas (ambiental, política, econômica etc.) que marcam o período atual, que transcendem, em muito, os limites nacionais. As possibilidades de reconstrução democrática na Bolívia (e não somente lá) estão diretamente relacionadas ao trabalho político constante de enfrentamento de forças e estruturas hegemônicas que, aproveitando-se de conspirações, brechas e vacilos, estão sempre prontas a “dar o bote”, impondo a todos sua avassaladora agenda da morte.