Dos recursos mobilizados para persuadir o leitor, considero eufemismos e ironias os mais sofisticados do ponto de vista linguístico. Ambas figuras de pensamento, são intencional e milimetricamente escolhidas na construção de um discurso e evidenciam a estratégia persuasiva do enunciador, evidenciando sua perspectiva política e ideológica projetada no enunciado.

A primeira, de acordo com o dicionário, sempre é utilizada para suavizar ideia ou expressão com carga negativa, rude ou vulgar. Para tornar mensagens desagradáveis mais toleráveis. Já a segunda, como crítica indireta, busca dizer o contrário do que está posto, podendo ser mobilizada para zombar de determinado contexto, sempre com teor crítico.

Ao acessar uma rede social neste finalzinho de maio de 2021, deparei-me comum eufemismo que, pelo absurdo do enunciado, mais pareceu uma ironia. O perfil oficial do Ministério da Saúde, seguido por quase três milhões de brasileiros, traz como manchete positiva, a decisão de autorizar a imunização de toda a população com idade acima de 18 anos dando destaque ao público dos trabalhadores da educação:

“Saúde autoriza imunização da população geral por idade e antecipa vacinação de trabalhadores da educação”.

Ao ler tal enunciado, como a própria dinâmica das redes sociais funciona, o cidadão pode até considerar positiva a medida. Porém se observarmos mais detidamente para o verbo escolhido na composição do discurso (grifo meu), logo enxergaremos a tentativa do MS em eufemizar o contexto cruel e catastrófico que estamos enfrentando.

Também de acordo com o dicionário, só se antecipa algo quando se faz chegar ou ocorrer antes do tempo marcado.

Há 15 meses no contexto da pandemia, após negligenciar o perigo do vírus, recusar testagem em massa, sucatear o sistema público de saúde com a falta de insumos para o tratamento da doença, e recusar dezenas de vezes a oferta de vacinas de laboratórios de diferentes países, inclusive do Brasil, o Governo Federal, realiza uma das campanhas de imunização mais lentas de todo o planeta enquanto chegamos à marca dos 500 mil mortos por covid-19.

Anunciar a “antecipação” da vacinação de uma categoria profissional poderia ser considerada notícia positiva caso a medida tivesse sido tomada quando as vacinas foram disponibilizadas pelas equipes de pesquisa. Poderíamos acreditar em antecipação se essa referida categoria já não estivesse sendo pressionada a retornar aos postos de trabalho bem antes da decisão governamental.

Para além dos eufemismos e ironias, a manchete me trouxe à memória a teoria da violência simbólica defendida por Pierre Bourdieu. Segundo o sociólogo, quando não é conveniente usar a violência através da força física e bélica, o Estado mobiliza o conjunto de significados do capital cultural pelos recursos persuasivos da Língua para exercer a violência, mas de modo sutil, velado.

Assim, fazendo a grande massa da população acreditar em discursos como o que discutimos aqui, a dominação não será necessariamente garantida pela força física, mas na conveniência da obediência, do conformismo.

Integro a categoria dos profissionais da educação, mas de modo algum alegrei-me em saber que após oito meses, o Governo Federal resolveu “antecipar” a vacinação de meu grupo e da população em geral. Meu sentimento é de revolta pelo deboche com o qual ironizam a tragédia anunciada e totalmente evitável se a gestão do país não estivesse sendo conduzida pelos negacionistas. 

Para esclarecer: 1 o grupo de educadores foi até então negligenciado; 2 a seleção de quem vacina antes ou depois evidencia que não há vacina para todos, resultante de medidas políticas equivocadas e com impacto no genocídio em massa; 3 a medida parece atender mais a interesses de pais que desqualificam o trabalho docente por via remota e que só reconhecem o ensino presencial ou a empresários da rede privada de ensino que precisam manter seus lucros. Educação não é prioridade.