Odair Giraldin 
Professor doutor da UFT (Campus Porto Nacional)
 
 
Tal qual pipa sem linha
Sem memória, todo Ser no ar flutua.
Não se sabe de onde vinha
Vai pra onde o vento atua.
 
Já se disse que passado e futuro não existem, existindo apenas o presente. Se olharmos apenas para o aspecto físico do tempo, de fato não há. Renato Russo já brilhantemente poetizou sobre isso no refrão da música Pais e Filhos, onde canta: “É preciso amar as pessoas como se não houve amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade não há.”
 
Porém, os seres humanos são seres sociais e por isso vivem segundo um duplo movimento: são empurrados pelo passado e puxados pelo futuro. Ainda que não o saibamos, toda a carga da história subjaz em nossas vidas nos dando empuxo para o presente e também para o futuro. Mas o Ser Humano é também puxado pelo futuro através dos planos que elabora, os quais vão dando sentido ontológico ao seu modo de ser. Ou seja, sem projetar, o ser humano cairia num ensimesmismo do presente que o deixaria sem direção. Seria uma pipa sem linha.
 
Assim,  somos seres sociais históricos; pipas com linhas. Por isso precisamos saber sobre nossa memória, sobre nossa história, pois é ela que nos diz de onde viemos e porque somos o que somos. Então o presente é, de fato, uma ponte entre o passado e o futuro.
 
E precisamos, seja como seres sociais, seja, sobretudo, como agentes e administradores públicos,  ter as habilidades para não erguer muros, mas em construir pontes entre passado e futuro. E quais seriam algumas das pontes que Porto Nacional pode (e deve) construir para ligar seus passados e seus futuros?
 
Quem olha pelo treliçado
Vê que o calor, entra não!
De adobe as paredes são
O telhado, enverga não!
No madeirame, só cega-machado.
 
Vejam como a arquitetura elaborada nos séculos passados resolvia o problema do calor tocantinense. Com paredes externas grossas de adobe e pé direito alto, as casas isolavam o calor externamente enquanto as janelas treliçadas permitam ampla ventilação, reduzindo a temperatura internamente.
 
Abandonando essa tecnologia e aderindo inconteste à tecnologia do ar condicionado elétrico, constrói-se ambientes que são inabitáveis sem aquele eletrodoméstico. Ressinto-me em saber que os prédios da própria UFT são assim construídos: praticamente sem janelas e dependente de iluminação e ventilação mecânica. E o mesmo vejo acontecer no Centro de Convenções Vicentão, em Porto Nacional, todo encaixotado e “adornado” com diversos aparelhos de ar condicionado  dependurados, qual penduricalhos, em suas paredes. Ironia: atualmente, com a presença do coronavírus, uma das recomendações é que os ambientes sejam mantidos arejados naturalmente.
 
Num futuro retorno às aulas presencias, a maioria das salas de aula do campus UFT de Porto Nacional terá dificuldade em atender essa recomendação da OMS. E o Vicentão terá dificuldades em receber público em seu interior. Se a tecnologia de construção fosse aquela dos séculos passados, isso não seria um problema.
 
Mandioca ou macaxeira
Precisa prestar atenção
Se usar errado faz besteira
Uma dá farinha coada na peneira
Outra com carne se coze no caldeirão
 
A agricultura tecnificada está presente de forma intensa em Porto Nacional e no Tocantins e veio para ficar, isso ninguém duvida. Mas a sustentação da mesa da maioria das famílias se dá pela agricultura familiar. É nessa prática que se mantém a relação não disruptiva com o meioambiente, com a preservação onfarm (ou seja, mantida cultivada no próprio local) que os pequenos agricultores conservam grandes áreas de cerrado e grande diversidade de sementes, formando uma ponte entre o passado e o futuro. O equilíbrio de construir ponte entre agricultura tecnificada e agricultura familiar é o desafio que se coloca para gestores públicos. Citemos uma questão para ilustrar. Com a chegada da agricultura tecnificada (sobretudo da soja) veio também a chamada mosca branca, que é comumente controlada com defensivos agrícolas em larga escala, mas que atacam as pequenas plantações familiares e causam grandes danos, sobretudo à horticultura.
 
Há um rio que passa e há o que passa no rio.
Casas e mulheres veem o rio passar
Já os homens vão passar no rio
Aquelas que fiquem esperando aqueles chegarem no mar
Depois de quase um ano, eles hão de voltar.
 
Assim era a relação de Porto com o rio Tocantins. Um caminho por onde os homens passavam em suas canoas e batelões em busca do mar e dos recursos que poderiam trazer de Belém. Mas além de permitir passar no rio, havia também a relação de contato com esse ambiente como as praias, as pescarias e as roças nas vazantes. Locais de pesca da pacu, ponto de pesca do mandi moela, ponto do jaú e do filhote no rebojo e na carreira comprida. Meninos aprendiam a nadar comendo piabinhas vivas nas suas margens e depois atravessavam-no para “pegar” melancia do outro lado e voltar nadando “tangendo” as melancias lançadas na correnteza. No entanto com a formação do lago, o rio parou de passar e os homens pararam de passar no rio. A tecnologia de construção das embarcações se perderam, e os pontos de pesca e os peixes se foram. E qual ponte se construiu para ligar aquele passado com o projeto de futuro de Porto?  
 
Tambores, pandeiros, violas e caixas ressoam
Jiquitai, roda, sussia e as poeiras voam
Antes, os benditos, as entradas, os agradecimentos
Folia trás louvor, preces e divertimentos.
 
As folias ainda estão conseguindo sobreviver, sendo uma das pontes entre passado e futuro. Elas aglutinam em si aspectos de artes e religiosidades, além de ser elemento de sociabilidade muito marcante. Eu não conheço uma folia que execute suas funções sem que esteja ligada a algum festejo de cunho religioso popular. Uma folia não “sai” batendo perna só para divertir as pessoas. E, vale lembrar, as folias podem ser executadas durante o ano todo, exceto na quaresma. Há, em Porto Nacional, a Folia de Santos Reis que, ao contrário da demais, “giram” apenas durante a noite, visitando as casas e realizando os pousos, parando somente ao amanhecer. Como se trata de um ritual, há uma linguagem comunicativa em execução que os presentes e praticantes precisam conhecer para poder compreender seus significados como, por exemplo, o ato de receber a benção do Divino é praticado de forma diferente por homens e mulheres; o posicionamento de talheres nas mesas; os movimentos da bandeira (chamada de divindade, pelos praticantes), dentre outros detalhes.
 
Esse aspecto de religiosidade está intimamente ligado às artes musicais tanto das violas, quanto dos pandeiros e caixas. Esse conhecimentos musicais são transmitidos geracionalmente no próprio ato praticado. Novos aprendizes adquirem os conhecimentos na própria execução durante as folias. E não se trata apenas de aprendizagem musical, mas também composicional, pois as “rodas” podem (e muitas vezes, devem!) ser compostas durante o “giro” da folia. 
 
Doce ou salgado
Douradinho, quebrador ou pé-rachado
Polvilho, carinho e amor, primeiro
Leveza de sabor e dureza, isto esta dado
Seco e bem duro, conserva o ano inteiro.
 
Ao longo da experiência de viver em meioambiente com características bem marcantes, com duas estações bem definidas (seca e chuva), saberes e fazeres foram aqui desenvolvidos para viver e sobreviver. Os saberes e fazeres culinários estão no ápice desta experiência. Usando a tecnologia do próprio sol que castiga, as gerações passadas desenvolveram técnicas que conviviam bem com o ambiente, dentre as quais podemos citar os bolos e quitutes, elaborados sobretudo tendo como base derivados de macaxeira ou mandioca. Peta, quebrador, douradinha, pé-rachado, paçoca de carne de sol além do amor-perfeito. Licores, como o de jenipapo, bem como o aluá (fermentado de baixo teor alcóolico elaborado a partir do ananás) associados aos quitutes, se transformavam em “bolos” do Divino nos festejos populares. 
 
Assim, penso que a coletividade pode e deve zelar pela memória, como fio que se liga a pipa. Como não faz parte de nossa tradição cultural que as pessoas particularmente cuidem de acervos e de saberes e fazeres visando sua preservação e transmissão, então essa função deve ser exercida pelo poder público. E essa memória não dever ser tratada como uma peça inerte, representativa do passado inatingível, mas sim como uma experiência de outros tempos, cujas soluções realizadas para viver aqui podem nos mostrar caminhos para avançarmos para o futuro de uma forma mais respeitosa e compatível com o ambiente em que vivemos.