Salatiel Soares Correia
é Engenheiro, Bacharel em Administração de Empresas, Mestre em Ciências pela Unicamp. É autor, entre outras obras, de Cheiro de Biblioteca.
 
A cena aconteceu na zona rural do interior do Brasil: um sertanejo resolve abandonar a família para viver dentro de uma canoa remando de uma extremidade a outra do rio.
A esposa, revoltada, expõe seu descontentamento com a decisão do marido: “Cê vai, ocê fique, você nunca mais volte.” (E aqui observe a habilidade comunicativa do autor com o pronome você. Que se inicia com a proximidade de cê, mas vai se distanciando em ocê para, enfim, formalizar-se num distante você). Sem se intimidar com a ameaça da patroa, o homem encomenda uma canoa “de pau vinhático pequena, com uma tabuinha na popa, como para caber justo o remador”.
E, assim, o solitário sertanejo se põe a remar de um lado para outro do rio cujo fluxo se assemelha com o passar da vida. Incessantes pedidos da mulher, dos filhos, do padre, nada, enfim, demove o homem de ficar remando de uma extremidade a outra do rio.
O tempo passa. A vida passa. O filho, já adulto, permanece firme na vontade de convencer o pai a voltar para o aconchego familiar. Tudo em vão. Ele continua lá, fazendo o que sempre fez no transcorrer dos anos: remar de uma extremidade a outra do rio.
Nem o nascimento do neto nem a a mudança da esposa para outra cidade demovem o solitário remador a voltar à normalidade da vida familiar. Enquanto isso, o filho continua a persistir na vontade de trazer o pai para a vida em família.
Já no fim da vida, o filho faz uma última proposta ao pai. Diz ele: “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto. Agora, o senhor vem, não carece mais. O senhor vem e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar na canoa!” Surpreendentemente, o pai aceita a proposta do filho. Mas este inexplicavelmente foge.
Essa surpreendente reviravolta encerra o conto com uma série de dúvidas. Que foi feito do pai?  O que levou o filho a mudar de atitude? Que leva um homem a abandonar a família para viver remando dentro de uma canoa? Quem souber as respostas talvez saiba nos explicar qual é a terceira margem do rio, que só tem duas margens. Falemos agora do autor e sua obra.
A "Terceira Margem do Rio" expressa a universalidade da obra do maior escritor brasileiro (ao lado de Machado de Assis). Falo do mineiro João Guimarães Rosa. Nesse conto, tal como no seu clássico “Grande sertão: Veredas”, o autor transcende do regionalismo para construir o sertão-mundo repleto das dores, angústias, inseguranças próprias do ser humano. Os personagens do universo rosiano vivem as mesmas angústias do congolês feito escravo pelo rei Leopoldo da Bélgica. Rosa se faz presente no sentimento do povo irlandês e na sua luta para se libertar do colonialismo inglês. Ou até mesmo na luta do povo palestino em busca de um Estado que lhe dê identidade. O universo é o mesmo, pois o ser humano, enquanto humano, é o mesmo. É exatamente essa capacidade de transcender do regionalismo para a universalidade que faz do mineiro João Guimarães Rosa um autor reconhecido mundialmente pela excelência de sua literatura.