Kayla Pachêco Nunes, 
professora da rede estadual do Tocantins no Bico do Papagaio e mestranda pelo ProfLetras/UFT – Câmpus Araguaína
 
Até ontem, o povo do Norte podia agradecer por ser esquecido. Ao longo dos mais de cinco séculos desde a ocupação europeia em terras brasileiras, e dos mais de 130 anos de república, dezenas de milhares de nortistas nasceram e cresceram sem sequer serem notados ou registrados como parte da história de nosso país. 
 
Com menções sobre a riqueza da fauna, flora e hidrografia da região amazônica, os livros e a imprensa pouco ou quase nada relatam sobre a vida para essas bandas do país, acima do planalto central. O desbravamento desse território mais próximo à linha do Equador pelos movimentos de Entradas e Bandeiras com expedições em busca de ouro, prata, pedras preciosas e índios escravizados, em idos do século XVII, estão entre os poucos capítulos dedicados à importância dessa parte do Brasil.   
 
E nessa grande área do mapa, numa região ainda mais escondida das narrativas sobre o povo brasileiro está o Bico do papagaio, um conjunto de cerca de 15 municípios com dez mil habitantes cada e economia predominante na agricultura de subsistência e pecuária, na divisa entre o Maranhão e Pará, no topo do estado do Tocantins, por coincidência, o mais novo estado brasileiro.  
 
Reconhecido pela Constituinte de 1988, a caçula entre as 27 unidades federativas, é fruto de uma intensa discussão política sobre o esquecimento. Sim, esse “deixar pra arrumar depois” na conjuntura de desenvolvimento nacional. Nós do norte, fomos apartados do vizinho Goiás com a esperança de sairmos do mapa do atraso. Com a autonomia financeira e administrativa, finalmente conseguiríamos mais espaço no cenário nacional e avançaríamos em qualidade de vida, assim como os estados situados mais ao sul, que haviam sido ocupados séculos antes da gente.  
 
Avançamos? Uma antítese, muito pouco. Desde então, além da ocupação e autonomia tardias, nós nortistas do Bico, continuamos sofrendo as consequências do atraso no tocante a políticas públicas de desenvolvimento social e integração nacional. Muitas de nossas rodovias ainda estão sob poeira e lama, como a Transamazônica. Nossos índices sanitários e educacionais continuam sendo um peso contra o IDH, e temos uma participação muito tímida no cenário político nacional. É como se fôssemos o quintal do Brasil, pois numa casa, geralmente é o que se arruma por último.
 
Já são mais três décadas desde a criação do estado, e ainda reivindicamos atenção das autoridades na mesma proporção à dispensada com os municípios situados mais ao centro-sul do estado. Não temos, num raio de 200 quilômetros, sequer um leito equipado com Unidade de Terapia Intensiva, UTI, e o primeiro centro universitário de uma instituição pública foi instalado há menos de cinco anos. O acesso à internet banda larga ainda não chegou em muitas das comunidades situadas na zona rural.
 
É sobre essas comunidades rurais, no Bico do papagaio que quero chamar a atenção. No mapa do esquecimento, os povoados do extremo norte do Tocantins, ocupam literalmente o topo. Paradoxalmente, após tanto esforço para que sejamos vistos, reconhecidos e assistidos, diante do contágio mundial da Covid-19, nosso desejo é que continuássemos esquecidos.  
 
Queríamos continuar invisíveis. Não para as políticas assistenciais ou de fomento ao desenvolvimento local, mas que pelo menos dessa vez, passássemos despercebidos pelo vírus. Lamentavelmente, de tanto reivindicar nossa inserção nos registros sobre o povo brasileiro, hoje nossas comunidades rurais sofrem com sua entrada para as estatísticas de vítimas do novo Coronavírus no país.  
 
Com grande desalento, recebemos nesse início de junho a notícia do falecimento de uma mulher residente em um dos povoados da região. A primeira perda da qual tivemos conhecimento entre os moradores da zona rural de nosso até então esquecido Bico. Para ela, a violência do vírus foi tão letal quanto a falta de atenção que sofremos desde sempre. Segundo os relatos de membros da comunidade onde residiu por muito tempo, ao necessitar de UTI para seu tratamento, essa senhora teve de percorrer mais de 200 km até Araguaína, na área central do estado, e de lá tentaria chegar a um leito disponível em nossa capital, Palmas há 600 km.  
 
Esse triste fato remeteu-me justamente ao movimento de Entradas e Bandeiras, às expedições que adentraram as matas e deixaram marcas profundas no coração do Brasil. As “Entradas” foram sendo marcadas com a ocupação de nosso território, as Bandeiras estão por vir, via siglas partidárias, trazendo nomes, fábulas, confabulações, tramas, esperança, desespero e, o que tem sido relegados à estas terras equatoriais: o esquecimento. Para esse vírus o antídoto é outro. 
 
Quiséramos nós, aqui no norte, continuarmos esquecidos, só mais um pouco, enquanto o vírus vai embora.