Marcelo Brice
é doutor em sociologia e professor da UFT
 
Folheando “O discurso autonomista do Tocantins”, ótima pesquisa e livro de Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante, tento pensar objetivamente sobre os 32 anos que completamos hoje como Estado. Remontar historicamente essa ‘fundação’ é importante porque identificamos nessa trajetória o que tornou possível a criação do Estado na Constituição de 1988. 
 
A denominação de “Norte goiano” ganha sentido em oposição ao “Centro-Sul de Goiás” e fundamenta o discurso e as relações construídas por Teotônio Segurado (isso mesmo, o da avenida de Palmas!). Em 1821 o argumento ganha corpo com vias a separação de uma região a outra, pois o “Norte goiano” vivia uma situação de abandono e em constante inferioridade econômica, o que causava grande perda por aqui. Figura fundamental e contraditória, o português Segurado foi contrário à independência do Brasil e ao mesmo tempo capitaneou o projeto de autonomia da região do Tocantins.
 
Como estratégia de poder, Portugal não apoiou a autonomia, apesar do desenvolvimento econômico que Segurado estimulou na região por meio do comércio e da exploração mineral. Por ser Império o fortalecimento das relações no Brasil passava por garantir posições já consolidadas. D. Pedro I sabia disso e não contrariaria o ‘Centro-Sul goiano”, a província de Goiás. 
 
Num salto histórico, em 1956 o discurso autonomista retoma suas potencialidades, fortalecido pelos anseios identitários e políticos do “Norte goiano”, tendo Porto Nacional (a capital secreta do mundo!) como um espaço definitivo de agregação no centro do território tocantino, importante escala do comércio pelo rio Tocantins, privilegiada pela proximidade com Natividade (capital ‘provisória’ do projeto separatista de Segurado). A “carta de Porto Nacional” que reivindica a autonomia tem um tom de manifesto e quer fazer valer a insígnia de que “Tocantinense não é goiano”, no máximo, está goiano. E com toda a razão, pois há caraterísticas de diferenciação, de linguagem, comidas e geográficas específicas. Apesar do cerrado extenso que recobre grande área. Isso tudo, claro, numa perspectiva dos regramentos administrativos fruto da modernização do Estado.
 
Quais as razões de que somente em 1988 foi possível a criação do Estado do Tocantins? Um acerto de contas com esse passado foi um dos critérios, o ajustamento de forças políticas locais para esse propósito, tendo à frente a figura paternalista e caudilhesca (carismática, autoritária e articulada) de Siqueira Campos, a situação do país pós-ditadura, país que “queria” encontrar o novo. O centro-norte amazônico e oeste do país foi objeto de ocupação predatória com fins de ganho econômico de um território no qual o Estado brasileiro num misto oligárquico, burguês e sempre exploratório matou os indígenas, quilombolas e nativos para implementar uma ocupação do interior do Brasil. A diferença, nesse acordo, entre identidade, articulação política e modernização foi a demonstração de uma viabilidade econômica tipicamente capitalista. E aí se fez a justificativa final para a uma burocracia própria, que organizasse, sempre de acordo com interesses espúrios, as relações e objetivos de saqueamento dos povos originários e dos trabalhadores, aproveitados pela grande oligarquia capitalista, desde já e agora a do agronegócio. 
 
A música “Fado Tropical” de Chico Buarque e Ruy Guerra diz muito. Vamos verter os trechos para o nosso homenageado, o Estado do Tocantins. “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!” “Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo… (além da sífilis, é claro)”. Aqui poderíamos trocar umas denominações, com prejuízo de rima, mas não de ideia, espero: “Portugal” por “pastagem, plantação de soja” ou “queimada do cerrado”; e o “sangue lusitano” poderia ser substituto por “oligarquia capitalista brasileira”. Noutra canção, “Tanto Mar”, Chico pede esperançoso e melancólico: “Canta a primavera, pá / Cá estou carente / Manda novamente / Algum cheirinho de alecrim!”
 
Esse Estado é lindo, majestoso, peculiar e caloroso (muito e em vários sentidos), há uma ocupação respeitosa que acontece aqui há séculos, os povos do campo precisam de atenção, não cooptação ou abandono. Nosso cheirinho de alecrim é o cheirinho de pequi. Que seus espinhos continuem a causar mortes e a furar línguas. Agora, vamos ao texto do Renato, que é muito mais leve e divertido!