“A raça é filha do racismo, e não sua mãe”.
COATES, Ta-Nehisi 

O Pacto Internacional pelos Direitos Civis e Políticos preconiza liberdades essenciais para a garantia da autonomia, direito da pessoa de ser dona de sí própria, do seu corpo e de suas opiniões. Contudo a pilhagem ou o saque do corpo da pessoa de sí própria, roubo de seu corpo e de sua subjetividade, pelas instituições, obedece a fronteira emergida pela cor da pele. Isto é, a fronteira entre as pessoas negras e as pessoas brancas, ou as pessoas que pensam que são brancas, ou que querem ser brancas. Desse modo, em consonância com a mais recente análise crítica sobre pilhagem dos corpos negros pelas instituições no livro Entre o mundo e Eu de Ta-Nehisi Coates (escritor de histórias em quadrinhos do personagem Pantera Negra) evidencia-se que, a propriedade do corpo está subjugada a cor da pele. O empenho do autor em refletir, sobre o que é ser negro nos Estados Unidos hoje, infere análises que em tudo se assemelham ao que é ser negro no Brasil. 

Para melhor fluir a abordagem sobre a fronteira da cor, neste artigo, cabe ordenar pontuações fundamentais sobre a supremacia branca, estruturada em reflexões sobre três âmbitos a saber: 1ºestablishment (ordem ideológica, econômica e política que constitui uma sociedade ou um Estado); 2º mídia e 3º cultura, que alerta para o posicionamento racista de todo o ordenamento ideológico, econômico e político que constitui a sociedade em suas instituições. Racismo fortalecido pela mídia, que interfere na ordem ideológica utilizando conceitos simplistas, superficiais e moralistas, entre outras questões, é comum veicular informações de adolescentes negros e pobres como sendo pessoas muito violentas. Racismo cultivado e eternizado pela cultura, em que prepondera a presença e a exaltação da beleza e bom caráter da pessoa branca, na literatura, filmes, novelas e etc. 

 Nesse seguimento, pondera-se que, a fronteira da cor da pele, não é uma fronteira simplesmente do racismo, esta fronteira pautada na cor do corpo, emerge distinguindo mundos sobre a mesma terra, forjando um limite entre o mundo das pessoas condenadas  a privações múltiplas perpetuamente, a si e seus descentes, com oportunidades como: subemprego, desemprego, sistema penitenciário e morte... e outro mundo, feito de e para, pessoas brancas possuidoras de múltiplas oportunidades, desprovidas do medo eterno da pilhagem de seus corpos pelas instituições. Este mundo, é intitulado por Coates como “Mundo do Sonho”, uma espécie de bolha fundamentalista criado por pessoas que querem ser brancas, precisam ser brancas e pensam que não são racistas. 

Sobre os habitantes do “Mundo Sonho”, são as pessoas que querem ser brancas, até possuem alguma característica, mas não atendem ao padrão estabelecido para serem de fato, sendo o padrão: pele branca, olhos azuis, cabelos dourados e lábios rosas, e então favorecem e enaltecem o que remete ao padrão da supremacia branca, mesmo não sendo, assim forjam um mundo, como um Sonho, em que as pessoas se acreditam brancas, valorizam tudo o que chegar mais próximo ao padrão imposto como branco, entretanto pensam que não são racista, por que no Mundo Sonho “o racismo é filho da mãe natureza”, sendo nesse mundo, natural acreditar, por exemplo, que todo adolescente negro é ladrão e deve ser considerado suspeito pela polícia a todo momento, e também deve ser violentado em abordagens policial para adquirir disciplina. 

No roubo dos corpos negros também intitula por pilhagem dos corpos, ocorre o saque do corpo negro pelas instituições, em que, por vezes, há violência física, vigilância e punição, tira a liberdade de ir e vir, pelo medo constante de ter seu corpo roubado, violentado e preso. Assim o medo da violência e a ameaça de ter o corpo roubado, são companheiros constantes de adolescentes negros, moradores de bairros segregados, com condições econômica e cor de pele que não os aproximam do “Mundo Sonho” das pessoas que querem ser brancas, que precisam ser brancas e portanto estão separados pela fronteira da cor da pele, que os distanciam do padrão almejado. 

A violência na instituição Escola é perpassada pela obrigatoriedade de “crescer e ser alguém” com a imposição de disciplinas e de vigilância, que não favorecem o protagonismo para o rompimento do ciclo de pobreza e da pilhagem do corpo negro. A fronteira salientada pela cor da pele, é emergida no Brasil, onde também existe o “Mundo do Sonho” das pessoas que querem ser brancas e também, todo establishment direcionado a prevalência da supremacia branca. Desse modo, é oportuno lembrar a existência de instituições como as organizações não governamentais, constituídas por pessoas organizadas em torno da luta contra a pilhagem dos corpos de adolescentes negros, em diversos países em que a constituição é democrática e garante os direitos civis e políticos das pessoas, entretanto, estas organizações não recebem a atenção da mídia como recebem os fatos que criminalizam os adolescentes negros, isto porque realizam o monitoramento da consolidação dos direitos garantidos na legislação. 

No Brasil, o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum DCA, representa aproximadamente mil entidades. São organizações não governamentais, fóruns e frentes estaduais (com ONG’s filiadas). Entre elas está a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) – Seção DCI Brasil, que se faz presente em 15 estados e no Distrito Federal, a partir da ação desenvolvida pelos 22 Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDECA’ s filiados, que unificam-se pela missão de proteção jurídico-social de direitos humanos de crianças e adolescentes.  

A atuação destas organizações têm sido decisiva na mobilização pela aprovação de leis e pela garantia da consolidação, como o artigo 227 da Constituição de 1988 que determina a absoluta prioridade no atendimento a criança, adolescente que assegure o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Cabe também mencionar a existência e a luta pela efetiva implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que entre muitos direitos preconizadas, afirma as idades da vida de criança e adolescente em lei.  

Desse modo, apesar de invisibilizado, o movimento contra a pilhagem dos corpos negros existe, por organizações de defesa dos direitos humanos e também por movimentos de consciência negra, constituído por pessoas que se afirmam negras e que lutam pela consolidação dos direitos das pessoas negras, que já estão preconizados em lei, contudo, por vezes, atendem a fronteira da cor da pele. Assim, ainda que com dificuldades, altos e baixos conforme o contexto político, perseguições e vitórias, as Organizações da Sociedade Civil existem e funcionam, entretanto àquelas organizações que de fato fazem acontecer a resistência contra a supremacia branca e a violação dos direitos de adolescentes negros e pobres, são perseguidas, taxadas de defensoras de bandidos e até têm representantes, ameaçados, perseguidos e mortos e, quando oportuno e possível são negligenciadas pela mídia.