Eduardo Simões
Professor de Filosofia
 
Caro leitor, você deve conhecer o conto A Roupa Nova do Rei, do romancista e poeta dinamarquês Hans Christian Andersen. Trata-se daquela história do rei vaidoso que gostava de roupas novas e bonitas, e que foi despertado pela ambição em ter as roupas de um tecido que tinha o predicado de “se tornarem invisíveis para as pessoas que fossem simplesmente estúpidas”, conforme prometido por dois trapaceiros que pretendiam vendê-las ao rei. Com a ambição de confeccionar aquele tipo de roupa, pretendia o rei conhecer quais dos seus servos não serviam para os cargos que ocupavam, além de distinguir os sábios e os estúpidos do seu reino. Dessa forma, mandou confeccionar as vestes e encheu os trapaceiros de sedas finas, ouro e muito dinheiro. Os dois montaram os equipamentos, fingiram trabalhar, mas não tinham fios nos teares. 
 
Desencorajado em ir ver a confecção com os seus próprios olhos, apesar da firme confiança na sua própria sabedoria, solicitou que dois dos seus funcionários fossem ver como estavam as roupas. Estes, apesar de não terem visto nada, manifestaram a satisfação com “as belas cores e com o gracioso padrão”. É lógico que eles não queriam assumir a própria estupidez!
Indo o rei ver com os seus próprios olhos, também não conseguiu enxergar nada, mas manteve a pose de sábio, confirmando a beleza e aprovando a confecção da roupa. Magnífico! Esplêndido! Formidável! – diziam os nobres funcionários que até sugeriram ao rei que vestisse aquela magnífica roupa na grande procissão que iria se realizar em alguns dias. Pelo prestimoso trabalho, os dois trapaceiros foram condecorados com o título de Cavaleiros do Tear.
 
Na procissão, todos comentavam: – Meu Deus, como são lindos os novos trajes do rei! Como lhe ficam bem! É claro que ninguém queria assumir publicamente a própria estupidez, ou então, evidenciar que não estavam aptos para ocuparem os cargos que ocupavam. 
 
– O rei está nu! Gritou uma criança.
– Meu Deus! Falou a voz da inocência! – disse o pai da criança.
O rei sentiu o abalo, pois lhe parecia que o povo estava falando a verdade. Entretanto, mesmo estando nu, aguentou firme até o fim da procissão. “Aprumou ainda mais o corpo, e os camareiros, solenes, continuaram a segurar o manto que não existia”. 
 
Gostaria de tornar atual a interpretação desse conto que, sem dúvida, não será única, ante a infinidade de possibilidades que o leitor pode encontrar.
Tal como o rei que protagoniza a história manifesta suas características de narcisismo, pretensão, autoritarismo e egocentrismo, estamos em uma realidade muito próxima a isso: gestores públicos incorporando atributos de arrogância, vaidade e autoritarismo que os fazem acreditar que estão acima de tudo e de todos, inclusive da lei, numa espécie de monarquia absolutista travestida de democracia. Se “seu rei mandou dizer”, o funcionário tem que obedecer. E, se assim não o for, “cabeças rolam”, isto é, a demissão do dissidente é sumária. Ocorrendo a demissão é só colocar um substituto que comungue com as “verdades” do rei que tudo fica resolvido. O importante é manter a pose! Mesmo que haja a consciência interna das próprias limitações cognitivas, o rei tem que se fazer de inteligente, erguer a cabeça, aprumar o corpo e seguir em frente dando as suas ordens. 
 
As roupas, por outro lado, querem representar o “senso de realidade”. O rei está descolado (desprovido) do senso de realidade quando ignora o real e se fixa no ilusório, no simulacro, nas aparências, isto é, em uma roupa (realidade) que não existe. Esse descolamento se dá quando o rei está na contramão da melhores práticas defendidas pela maioria das nações: quando ignora a importância das causas ambientais e da proteção das culturas e dos povos tradicionais; quando motiva a implementação de política que autoriza a ampliação exacerbada do uso de agrotóxicos; quando incita a grilagem de terras públicas para expansão da pecuária; quando incentiva o garimpo ilegal, promovendo a destruição de florestas; quando entende que direitos humanos é defesa de bandido; quando  menospreza as relações internacionais de diplomacia com nações que não comungam com seu cunho ideológico; quando prioriza o mercado em detrimento da proteção de vidas em uma situação de pandemia; quando despreza a importância da cultura e das artes para o desenvolvimento social, asfixiando suas manifestações por meio do corte do financiamento público; quando nomeia a universidade de celeiro de produtores e usuários de drogas; quando não tem projetos assumidamente eficientes para a educação e para a saúde; quando vê o servidor público como inimigo nação e responsável pelas seus infortúnios. Acresce-se a isso que esse tipo de gestores, desprovidos do senso de realidade, geralmente abdicam de governar para se fixar na luta contra um inimigo que, supostamente, quer lhe derrubar. Impõem um discurso de unidade nacional e propõem que os supostos inimigos da nação sejam eliminados. Criminaliza movimentos sociais, ONGs, associações, sindicatos, entidades de classes e partidos políticos que não estão de acordo com sua ideologia. Para se fortalecer no poder, selam unidade com a pauta neoliberal que defende a eliminação de direitos trabalhistas, a austeridade fiscal, a diminuição do Estado, a desregulamentação e a abertura de mercado. Pauta esta, que não pode sustentar-se a não ser sob o viés do autoritarismo de feição fascista. Para vencer os inimigos precisam utilizar de todas as armas disponíveis, sejam elas legais ou ilegais, para afastar qualquer risco de perda de poder. Esse tipo de descolamento do senso de realidade é, geralmente, fruto de ilusão, de um devaneio injustificado, que impede o gestor de governar em prol do real, daquilo que realmente é importante para o seu povo, para se fixar em delírios e desatinos subjetivos. 
Quanto aos trapaceiros, estes são figuras carimbadas no interior desse tipo de sociedade. Sempre que há oportunidade de uma relação parasitária, eles tomam conta e assumem o seu espaço. Em algumas sociedades, inclusive, eles são premiados e recebem títulos como o de “Cavaleiros do Tear”. A premiação se dá pela sua esperteza, por servir de arquétipo de pessoas inteligentes que se deram bem na vida porque, com “virtù”, souberam aproveitar da “fortuna” que lhe passou à frente e dela tirou todo seu proveito, conforme dizia Maquiavel em O Príncipe. Em muitos casos, tais personagens são, inclusive, eleitos para cargos políticos, visto da apreciação popular por pessoas de inteligência aguçada, mesmo que seja para esperteza e velhacaria.
Os ministros, conselheiros e funcionários, isto é, a cúpula que acompanha o rei, representa a bajulação que é comum nos bastidores do poder. Independentemente do desvario do rei, ainda assim, eles se mantêm fiéis em virtude dos seus ganhos pessoais, do status e da projeção da imagem pessoal. Coadunam, portanto, com os devaneios, com as distorções da realidade e com a estupidez do líder, pois como se trata de um “ser divinizado” (uma espécie de mito), não pode ter as suas escolhas e atitudes questionadas. Muitos, inclusive, deixam claro que, independentemente das pautas individuais dos seus colegas, estarão ao lado do rei “para lutar”. Com isso, são admirados nas redes sociais pelos seus atos de bravura!
 
Enfim, temos os dois últimos personagens, também centrais do conto: os cidadãos e a criancinha. Quanto aos cidadãos, vimos serem eles, juntamente como os fiéis escudeiros do rei, aqueles que sacralizam a realidade; que colocam o selo da verdade no conhecimento falso que circula, não assumindo, de modo algum, que algo está errado. Tratam-se daqueles que veem, mas fingem não enxergar; que escutam, mas permanecem com os ouvidos cerrados; que raciocinam, mas não assumem os seus próprios equívocos morais e intelectuais; que morrem na defesa daquilo que para eles é uma “verdade inquestionável”, mesmo que tal “verdade” necessite de qualificação por meio dos fatos; e que, muitas das vezes, são irredutíveis ante à sua própria cegueira. Esse povo, entretanto, sabe que, no fundo, “o rei está nu”, mas é preciso o grito da criancinha para que a “ficha venha a cair” para alguns deles. Mas, quem é a criancinha nesta sociedade?
 
A criancinha é aquela que, desprovida de preconceitos que podem a aprisionar (sejam religiosos, políticos, econômicos ou sociais), não dá a mínima para roupas novas do rei. Para ela pouco importa o que está por trás do simulacro, ela simplesmente denuncia: “o rei está nu!”. Isto é, ela ri daquilo que constitui a verdade dos funcionários do rei, bem como dos fanáticos que o seguem, imprimindo-lhe o selo de divindade. O grito da criancinha, felizmente, ainda desperta a muitos, contudo, não tem o poder de acordar a todos. Muitos insistem em querer continuar contemplando as roupas que não existem e continuar a procissão “segurando o manto que não existia”. Mesmo assim, é preciso que estejamos abertos aos clamores daqueles que na sociedade desempenham o papel dessa criancinha, a fim de que descubramos que “o rei está nu!” 
 
E você, consegue ver que o rei está nu?
 
Qualquer semelhança entre a interpretação desse conto, com a atual situação político-administrativa do Brasil, é mera coincidência!