André Luiz Bentes
professor de Filosofia na UFT e Unitins
 
 
Tudo é muito triste. Mas esse afeto, mais que recorrente na história humana, pode fazer mal à vista. 
 
Pela primeira vez, o planeta reage a uma ameaça global de forma simultânea. A gravidade da situação, ainda misteriosa, gerou uma crise sanitária no mundo e limpou os rios e ares. Os dias em que a Terra parou foram seguidos pela acelerada retomada da especulação financeira internacional e da reabertura da economia. Mas o que ocorre no “terceiro mundo”? Bom, a coisa segue feia, porém, nada se compara ao profundo fosso que serve de sinônimo hoje à maior economia da América Latina: o Brasil.
 
Já aprendemos que as crises constituem o sistema vigente, sob o qual estamos todos conectados. Ante tamanha contingência, estaríamos também mais unidos? Um símio velho, e pessimista, arriscaria que não. O “pico de Covid-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela, diz presidente da XP”. Guilherme Benchimol estava quase certo. Mas esqueceu de dizer que o pico só passou de raspão mesmo, nas classes das ilhas (e respiradores) particulares.
 
A economia internacional acelera no mesmo ritmo que aumenta o número diário de enterros no Brasil, cujo mercado financeiro celebra em êxtase mórbido o retorno das atividades na China, Europa e Estados Unidos e, claro, vai às compras. Pra quem é rico, o oxigênio nunca foi de graça: o tempo de uma respiração significa lucro ou prejuízo, mas os momentos de desespero são sempre oportunidades!
 
É preciso lembrar que as sociedades são dinâmicas, a incerteza impera e temos todos igualmente motivos para crises e êxtases existenciais. Logo, existe um termômetro enfiado em cada clique feito na rede mundial. Em alguns casos, esse termômetro serve à otimização do controle, mas também dos serviços. Em outros, é apenas uma pesquisa de mercado. Em comum, ambos os casos possuem o fato de se deliciarem com a docilidade. A sujeição. A demonstração de anuência, sobretudo dos que mais pensam: vamos ficar em casa, é óbvio! Afinal, poder pensar é o maior de todos os privilégios. Mas, esquecer que tem uma boiada passando ao lado, é o preço alto que todo pensamento paga. 
 
A perspectiva de que estejamos contemplando a vigência de um estado suicidário, como consequência extrema da necropolítica, é apenas a conclusão romântica de quem tem muito otimismo, fé revolucionária e, talvez, um bom coração, na medida em que, ali, ainda paira a expectativa da comunhão contra o mal. Mas a história universal, longe de ser a autobiografia da luta pela liberdade, como idealizava Hegel, é apenas o conjunto das narrativas que prevaleceram. Assim, é preciso estômago para admitir, que não estamos (e nem estávamos) próximos de chegar a lugar algum. Somos marionetes em uma guerra entre narrativas, mas vejam quem media: é a bomba atômica! É o novo normal. 
 
O lucro, a nível internacional, tem dois caminhos: o das empresas e o dos cartéis. Se trouxermos aqui a charmosa teoria dos conjuntos e fizermos uma intersecção o que sobressai?  Bom, seja pela força do Estado ou não, ainda que o domínio jurídico salte às vistas (pelo mesmo motivo que se extinguiu a escravidão), é a violência, ou a sua mera iminência, quem vem ditando as regras. E no Brasil ela tem como representante um dinamismo robusto e resiliente: a necrocentrífuga.
 
O terror, enquanto estado latente da violência, espelha a realidade ordinária de modo monadológico, isto é, substancial e multifacetado. Seu correlato biológico direto é o vírus: ambos quase vivos, mutantes, presentes e ameaçadores. Ambos ameaçam a existência de todos os corpos: mas fazem desaparecer apenas uma percentagem. Os que ficam devem consumir, e trabalhar, é claro. 
 
Como iniciei afirmando (e corroboro): tudo é muito triste. Ah! Mas o que é um afeto?  No Brasil, o confinamento acabou quando se consolidou um movimento sujo que qualquer pessoa privilegiada compreende muito bem: o centrífugo. Ironicamente, o movimento utilizado para expurgar o resto de sujeira e sabão da classe média, nas classes ricas, tem o efeito contrário: estamos testemunhando no Brasil o fascismo anacrônico, mutante, ameaçador e presente... que aprendeu a dialogar... com o centro. A regra do afastamento das polaridades iguais cai por terra, neste caso, de braços dados com qualquer teoria nostálgica.
 
Assim, os números aumentam. Seguimos na contramão. O fedor da necrocentrífuga se potencializa ao ritmo de corpos que apodrecem. Os corpos não são a meta, são, antes, os meios. Tudo é muito triste. Mas a vista aguçou! O ouvido já ousa até crer em ruídos. Talvez sejam passos! Mas não pode ter fim. E nem lugar pra sentar e assistir, só. Sobretudo, nas beiradas.