A proibição de crianças brincarem no pilotis de um prédio residencial em Brasília gerou polêmica na capital federal na última semana. A área, definida pelo urbanista Lúcio Costa em cada edifício como um espaço livre e acessível a todos, virou palco de um protesto realizado hoje (29). Chamado de “Brincalhaço”, o ato reuniu pais e filhos contra a restrição de uso do espaço.

O debate sobre o uso do pilotis por crianças começou quando a arquiteta Larissa Villela, 31 anos, contou a história de suas filhas no Facebook. A mãe de Maria Eduarda, 4 anos e Rafaela Maria, 2, descreveu que as filhas foram proibidas pela síndica de brincar ou fazer barulho embaixo do Bloco H da quadra 312, na Asa Sul, no Plano Piloto.

“As crianças estavam brincando de panelinhas embaixo do prédio quando a babá foi abordada. Inicialmente, não quis discutir com o porteiro, mas levei o caso à assembleia de condomínio”, descreve Larissa. Em assembleia, a mãe foi informada sobre a existência da regra há mais de 20 anos, em regimento do condomínio.

“Me disseram que lugar de crianças é no parquinho, e que não poderia haver brinquedos espalhados pelo chão. Só pode ficar no pilotis se não fizer barulho”, conta. “Mas acredito que não pode ser tão restrito assim. As crianças estão sendo proibidas de serem crianças. Sou de Brasília e já brinquei muito debaixo do bloco onde morava.”

Convocado pelas redes sociais, o Brincalhaço atraiu moradores da capital federal e reuniu crianças com desenhos e cartazes contra a restrição. Brincar debaixo do prédio, andar de bicicleta, desenhar e pintar o rosto foram as formas de mostrar a insatisfação dos pequenos moradores com a proibição.

“Brasília foi construída para ter livre acesso. Sou contra a criança ficar muito em jogo, ligada em televisão. Meu filho, por exemplo, nunca assistiu televisão. Acho que ficar embaixo do prédio é importante, inclusive por uma questão de sociabilidade. Brasília está ficando muito careta, são muitas proibições”, disse a advogada Gabriela Pessoa, mãe de João Gabriel, de 1 ano.

Mãe de Júlia, 2 anos, a servidora pública Kelly Martins também criticou a proibição de uso do espaço. “O pilotis é uma construção em área pública, que não se pode fechar e restringir as crianças de brincar. Claro que há exceções para objetos que possam machucar. Mas vejo que Brasília está numa crescente onda bastante restritiva, como a Lei do Silêncio, que também impede barulhos, sons [no período de 22h às 7h]. Apesar disso, não tem como impedir a criança de ser criança, de brincar.”

Após a polêmica, uma assembleia extraordinária de condomínio foi marcada para discutir novamente o assunto entre os moradores, na próxima semana. Entre os motivos alegados para a instituição da cláusula estão a segurança e a manutenção do edifício. Procurada, a síndica do prédio, Salete Gomes, não atendeu à reportagem.

Áreas livres

Técnica desenvolvida pelo urbanismo moderno de Le Corbusier, os pilotis são áreas com utilização do térreo livremente, em que o prédio é apoiado no chão por meio de pilares, deixando um vão. O conceito se encaixou perfeitamente nas Superquadras idealizadas por Lúcio Costa para Brasília, como grandes “quarteirões” abertos, maiores que os de uma cidade comum e radicalmente diferentes destes por dispor de “chão livre e acessível a todos”.

A característica da cidade foi destacada pela Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Distrito Federal, que divulgou nota após a polêmica das brincadeiras no pilotis. “Nunca é demais reiterar que nossa cidade se distingue mundialmente como uma das mais importantes e completas realizações dos preceitos modernos em arquitetura e urbanismo, razão pela qual recebemos a honraria do reconhecimento mundial, pela Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], figurando hoje no rol das realizações humanas a se preservar. Somos também uma cidade cujas características distintivas são protegidas pelo tombamento federal e pelo Governo do Distrito Federal.”

O Iphan ressalta que a liberdade nos usos dos pilotis está diretamente relacionada ao conceito de “novo modo de viver” que Lúcio Costa propôs quando pensou a nova capital. “Uma configuração única que não tem outra razão se não o seu uso – pleno uso – comunitário. Nesse sentido, conceitualmente nos parece bastante evidente que é a sua intensa utilização, por crianças, jovens e adultos, que faz de Brasília ser o que é: uma cidade diferente, vocacionada ao viver cotidiano e aos encontros que não devem ser impedidos por decisões restritivas de usos. Sobretudo, por usos tão explicitamente benfazejos, como o de crianças brincando, vivendo e se desenvolvendo nesses espaços.”

A Secretaria de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude do Distrito Federal (Secriança) acionou o Conselho Tutelar da região para garantir o direito das crianças do edifício e de toda a comunidade.

“A Secriança defende o direito de brincar das crianças no espaço público, com segurança, principalmente com acompanhamento de familiares e responsáveis. Vale lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] garante como direito fundamental de crianças e adolescentes o direito à liberdade, sendo expresso em seu Artigo16: o direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: brincar, praticar esportes e divertir-se”, destaca.

Grades

Construída para ser uma cidade com espaços livres, a capital do país tem se distanciado de seu plano original. Em 2016, a Agência Brasil mostrou que cada vez mais espaços de Brasília são cercados com grades, tapumes, cercas vivas e condomínios fechados, opondo-se à ideia de Lúcio Costa de criar uma cidade parque.