Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas nesta segunda-feira (15) em várias cidades da Bolívia para protestar contra a prisão da ex-presidente interina Jeanine Añez, detida no último sábado (13).

Conforme decisão da Justiça boliviana, Añez deve passar os próximos quatro meses em prisão preventiva sob acusações de conspiração, sedição e terrorismo durante os dias que se seguiram à renúncia de Evo Morales, em novembro de 2019.

"Não foi golpe, foi fraude", diziam os cartazes dos manifestantes em cidades como La Paz, Cochabamba, Sucre, Trinidad e Santa Cruz de La Sierra. As palavras de ordem ecoavam a reação da própria Añez à sua prisão, segundo a qual ela estaria sendo responsabilizada criminalmente por um "golpe que nunca aconteceu".

Em Santa Cruz de La Sierra, capital econômica da Bolívia e um reduto da direita opositora, cerca de 40 mil pessoas se reuniram na praça Cristo Redentor, segundo estimativas de autoridades locais.

"Esses presos, esses perseguidos políticos, não os abandonaremos", prometeu o ultradireitista Luis Fernando Camacho, referindo-se a Añez e a dois de seus ex-ministros. "Estaremos firmes porque esta será uma luta forte."

Camacho foi aliado da ex-presidente interina na manobra que levou à renúncia de Evo, e também é investigado por conspiração, mas o Ministério Público da Bolívia não pediu sua prisão.

Ao contrário de Añez, ele concorreu à Presidência nas eleições de outubro e ficou em terceiro lugar, com 14% dos votos, enquanto a ex-líder interina desistiu de sua candidatura, pedindo união contra os socialistas.

Na semana passada, Camacho obteve mais de 55% dos votos nas eleições regionais e foi eleito governador de Santa Cruz, enquanto Añez teve um desempenho fraco no pleito no departamento de Beni, ficando em terceiro lugar.

Os partidos de Añez (Unidad Nacional) e de Camacho (Creemos) juntaram-se a outras legendas da oposição de centro e de direita nas acusações contra o Judiciário boliviano, que estaria, segundo eles, subordinado ao governo de Luis Arce, aliado de Evo que agora preside o país depois de uma vitória avassaladora nas urnas.

Cinco ex-ministros do governo interino de Añez --Arturo Murillo (Governo), Luis Fernando López (Defesa), Yerko Núñez (Presidência), Álvaro Coimbra (Justiça) e Rodrígo Guzmán (Energia)-- receberam ordens de prisão. Destes, Coimbra e Guzmán já foram detidos, mas o objetivo dos opositores é impedir que as prisões continuem.

Há ainda ex-militares, ex-chefes de polícia e outros civis na mira do Ministério Público. Todos são alvos de uma denúncia apresentada por um bloco de deputados e ex-deputados do Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Evo e Arce. No processo, a Promotoria acusa a cúpula do governo de Añez de ter causado mais de 30 mortes na repressão aos protestos após a saída do líder indígena.

As acusações de "sedição, conspiração e terrorismo" referem-se ao modo como Añez atuou no período em que esteve interinamente no poder --entre 12 de novembro de 2019, dois dias depois da renúncia de Evo, e 8 de novembro de 2020, quando Arce assumiu depois de vencer as eleições realizadas em outubro.

Em resposta aos protestos desta segunda, o atual ministro da Justiça, Iván Lima, disse que "o golpe deve ser resolvido na Justiça e não nas ruas".

"O que buscamos não é uma detenção de quatro meses. O que buscamos é uma pena de 30 anos, porque aqui ocorreram massacres sangrentos", disse Lima, referindo-se à prisão preventiva determinada contra Añez e aos incidentes violentos registrados durante o governo de transição.

A detenção da líder conservadora, que se escondeu dentro de uma cama box quando os policiais entraram em sua casa em Trinidad, gerou críticas da Organização dos Estados Americanos (OEA). Segundo a entidade, os canais judiciais bolivianos estão sendo objetos de abuso para fins políticos.

"Eles se tornaram instrumentos repressivos do partido no poder [o MAS]. O sistema judicial da Bolívia não está em posição de fornecer as garantias mínimas de um julgamento justo, de imparcialidade e do devido processo legal", disse, em uma publicação no Twitter, o secretário-geral da OEA, Luis Almagro.

Em resposta, Evo criticou Almagro por se omitir diante de "36 assassinatos, 800 feridos, 1.500 detidos ilegalmente e centenas de perseguidos".

"Não nos surpreendemos com sua defesa de Añez, porque ele [Almagro] também deveria ser julgado por promover o golpe de Estado e por crimes contra a humanidade na Bolívia", escreveu o ex-presidente.

Em 2019, a OEA era oficialmente responsável por monitorar a eleição presidencial. Após a vitória de Evo, o órgão apontou fraudes no processo eleitoral, reforçando os argumentos da direita opositora. Agora, a OEA pede a libertação de Añez e seus ministros e que haja uma investigação internacional independente.

Para a Anistia Internacional, a prisão da ex-presidente interina, junto com a decisão de rejeitar quaisquer processos pendentes contra membros do MAS, representa a continuação de uma "crise de impunidade" que já dura décadas na Bolívia.

Dois dias depois de Evo deixar o cargo, Añez chegou ao poder em uma controversa manobra legislativa, aproveitando-se de uma brecha na legislação boliviana, uma vez que todos os que estavam na linha de sucessão direta renunciaram após a saída de Evo.

Sem ter reunido quórum nem na Câmara de Deputados nem no Senado, ela justificou que assumiria a Presidência de acordo com o que estabelece o regimento do Senado sobre sucessão na Casa.

Segundo as regras, ante a renúncia do presidente e do primeiro vice-presidente do Senado, o regimento permitia que ela, segunda vice-presidente, assumisse o comando.

Em seu mandato, de 11 meses, Añez enfrentou uma dura oposição do partido de Evo, que incluiu atos violentos e bloqueios de estradas reprimidos pelo Estado. Também durante o governo interino, a Justiça boliviana abriu processos judiciais contra Evo, que o acusavam de terrorismo por estimular protestos violentos. Uma ordem de prisão foi expedida contra ele, mas o ex-presidente se refugiou no exterior.

A ordem de prisão foi cancelada em outubro. Em entrevista à Folha, o ex-vice-presidente Álvaro García Linera, que assessora Arce "de modo informal", disse que as acusações contra Añez e contra Evo são "completamente diferentes".

"Igualá-las é tentar diminuir a Justiça boliviana. As acusações contra Morales nunca foram comprovadas, e eram por suposto 'terrorismo', por ele ter supostamente incitado rebeliões desde o exterior. Isso nunca se provou. Contra Añez, o processo é outro", disse Linera.