Na aparência, o primeiro fim de semana das férias escolares de verão na França foi igual a todos os outros. Neste ano, porém, houve uma diferença importante. Os franceses pegaram a estrada, mas 3,3 milhões deles deixaram para trás votos por procuração para o segundo turno das eleições legislativas, neste domingo (7). Na França, o voto é facultativo, mas é permitido autorizar alguém a votar em seu lugar.O número recorde de votos por procuração —quatro vezes maior que na eleição anterior, em 2022— demonstra o grande interesse despertado por este pleito fora de época, que pode levar a ultradireita ao poder na França pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial.A taxa de participação às 12h de Paris (7h da manhã em Brasília) já estava em 26,6% do eleitorado. Isso permite prever que no fechamento das urnas, às 20h, o total ultrapasse os 66,7% de comparecimento de uma semana atrás, no primeiro turno.Uma pesquisa da Ipsos, realizada no domingo passado, mostrou que a baixa abstenção ocorre tanto entre os eleitores da ultradireita, empolgados com a perspectiva de vitória, quanto entre os de centro e de esquerda, temerosos de que Jordan Bardella, 28, presidente da Reunião Nacional (RN), torne-se premiê.As pesquisas também apontam que a RN se tornará o maior grupo na Assembleia, distante, porém, da maioria absoluta, 289 dos 577 deputados —e Bardella já disse que não governará sem ter maioria.Segundo a Ipsos, a ultradireita terá um máximo de 205 cadeiras, contra até 175 da Nova Frente Popular, coalizão de esquerda, e até 148 do Juntos, o bloco de centro do presidente Emmanuel Macron. Isso pode levar a um impasse até a definição do primeiro-ministro que sucederá o centrista Gabriel Attal.O Ministério da Justiça anunciou um contingente excepcional de 30 mil policiais nas ruas francesas neste domingo, devido ao temor de quebra-quebra após o anúncio dos primeiros resultados —o clima durante a semana foi de alta polarização.Nos últimos dias, centenas de intelectuais, artistas, jornalistas e esportistas se pronunciaram publicamente por uma "frente republicana" que impeça a vitória da RN. A Folha ouviu algumas dessas personalidades esta semana na Praça da República, tradicional ponto de manifestações políticas na capital francesa.O jornalista Edwy Plenel, ex-diretor de redação do jornal Le Monde e fundador do site de jornalismo investigativo Médiapart, qualificou de irresponsável a decisão de Macron de dissolver a Assembleia Nacional e convocar a eleição, após o mau resultado no pleito para o Parlamento Europeu, no início de junho."A oposição [de esquerda] não teve tempo de se organizar de verdade. [Macron] é como um juiz de futebol que diz ao time que ganhou uma partida: 'segue o jogo, a bola está no seu pé, pode fazer outro gol'. E é bem possível que a extrema direita faça esse gol", comparou Plenel.Para ele, o risco é que chegue ao poder um grupo político "apoiado pelo imperialismo russo, um regime neofascista que apoia madame Le Pen". Ele se refere à líder da RN, Marine Le Pen, 55, que declarava publicamente sua admiração pelo líder russo, Vladimir Putin, até a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.Plenel advertiu para o risco de três dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas —Rússia, França e EUA— passarem a ter governos antidemocráticos, em caso de vitória do partido de Le Pen na eleição legislativa francesa e do republicano Donald Trump na eleição presidencial americana, em novembro.Julia Cagé, uma das economistas mais respeitadas da França, disse à reportagem que a vitória da RN "será catastrófica sob todos os pontos de vista"."Veja o que aconteceu no Brasil com Bolsonaro", afirmou Cagé, autora de um livro sobre a história eleitoral francesa, escrito com o marido, Thomas Piketty, outro economista de renome. "Será um desastre para a universidade, para a liberdade de pensamento, para a independência da mídia, para os direitos das mulheres."Alguns jogadores da seleção francesa de futebol masculino, atualmente disputando a Eurocopa na Alemanha, conclamaram os eleitores a votar contra a ultradireita. Entre eles, o maior ídolo da França, Kylian Mbappé, e o atacante Marcus Thuram.O pai de Marcus é Lilian Thuram, campeão mundial com a França em 1998 e conhecido pelo engajamento político. À Folha, Lilian disse se orgulhar pelo posicionamento do filho. "Na minha época, Jean-Marie Le Pen [pai de Marine e fundador da RN] já dizia que na seleção francesa havia jogadores demais com a pele negra. Não há nada de novo. A ideia da RN é dizer que, se você não é branco, você não é totalmente francês."